IV

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"As escuridão se aproxima, esgueirando-se na ausência de luta e se alimentando do medo."

Antigo Império Egípcio, 2526 a.C

   Essa era a parte que Kytzia mais odiava.Era o momento mais assustador e terrível, a atmosfera se tornava tão densa que poderia ser cortada a faca.

   A jovem obedeceu às ordens de Madu, fechou as cortinas e tentou se preparar para os rituais que viriam a seguir. Madu caminhava entre as prateleiras extensas sem titubear, sabia exatamente onde estava cada elemento necessário.

   O homem empurrou a mesa para perto da parede, colocou uma cumbuca amadeirada em seu lugar e derramou o conteúdo do primeiro recipiente. O líquido viscoso como mel se espalhou na bandeja, sua cor mudou de azul anil para vermelho vívido.

   A temperatura no quarto caiu, Madu seguia os movimentos como se aquilo fosse uma atividade completamente normal. Três outros recipientes foram derramados, um deles continha uma mistura de cheiro forte e fétido que fez a cabeça de Kytzia balançar. Ela tentou evitar raciocinar sobre o que era aquela gosma de cor  musgo. Poderia ser qualquer coisa, até partes de uma pessoa. Não seria a primeira vez que o ancião teria manipulado um cadáver.

   Kytzia não sabia muito sobre Madu, todas as informações que ela tinha eram superficiais. Ela não se sentia no direito de questionar, o homem havia salvo sua vida quando ela tinha cinco anos. Segundo ele, a mãe da moça era uma prostituta palaciana que foi expulsa quando adoeceu e abandonou a menina nas margens do Nilo, sem ao menos se preocupar com os crocodilos e hipopótamos. Soldados assírios, que realizavam uma exploração não autorizada pela região, encontraram a criança e estavam prontos para cometer suas tradicionais crueldades. Ninguém se incomodou em protegê-la, nem mesmo os sacerdotes do rei que correram sem olhar para trás, assim que viram os invasores.

   Madu, pescador na época se solidarizou com a situação da menina e decidiu negociar com os soldados, trocando as suas poucas moedas pela vida de Kytzia. Desde então, ele a criou, conseguiu sua vaga de cortesã quando ela tinha quinze anos, a educou em odiar a realeza, entrar na vida da dinastia fazia parte do plano de infiltrá-la no palácio real.

   Na maior parte do tempo ficava satisfeita com sua participação no projeto, a dinastia era fonte de sua vida desgraçada de bastarda estrangeira. Isso sem contar os incomensuráveis privilégios que a realeza tinha em relação ao resto da população.

   Servos morriam todos os dias para cumprir os desejos megalomaníacos dos Faraós.

   A jovem havia sido criada para executar um elaborado objetivo do feiticeiro, ela pensou muitas vezes em fugir depois das longas aulas de história e controle de comportamento. No entanto, tal ação seria ingratidão. Ela devia sua vida ao velho, que apesar de nunca ter agido como pai, sempre a alimentou e lhe deu abrigo. Era parte de sua obrigação retribuir os sacrifícios de Madu, que cinco anos atrás tinha aposentado a carreira de pescador e passou a se dedicar exclusivamente a feitiçaria. Uma vez que seu corpo tinha começado a se tornar decrépito e sem força, o homem parecia com uma folha seca prestes a se quebrar.

   O que piorava ainda mais sua condição eram as pernas tortas e frágeis, as quais ele afirmava ser consequência de um problema de nascença.

   O feiticeiro misturou o caldo denso, que ferveu mesmo sem estar exposto ao fogo, a mistura borbulha e muda de cor até atingir um negro espelhado. Com o dedo indicador ele usa o líquido como uma tinta, uma folha de papiro antiga e larga recebe os hieróglifos do homem. A tensão penetra a espinha de Kytzia, ela sabe o que vem a seguir.

   Em transe o feiticeiro prossegue escrevendo no papiro antigo, seu espírito parece pertencer a outra dimensão, enquanto ele faz a atividade.

   Em transe o feiticeiro prossegue escrevendo no papiro antigo, seu espírito parece pertencer a outra dimensão, enquanto ele faz a atividade

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