Croácia, setembro de 2015.
Eu penso nela todos os dias.
Todos os dias eu escuto a voz dela pela manhã, na última mensagem de voz que me deixou. A petulância dela, a excitação para as atividades mais simples, tudo sobre ela traz saudades. Ainda dói. Mesmo três anos após o Alinhamento, a ausência de Malu ainda dói na minha carne.
Depois que ela se foi, tudo pareceu acabar para mim. Pelo menos, era o que eu queria que tivesse acontecido. Lucem e Aariak criaram uma farsa para omitir os verdadeiros acontecimentos daquela noite, ninguém duvidou. Exceto aqueles que participaram ou usuais teóricos de conspirações.
Malu foi dada como uma das vítimas da terrível tempestade que assolou o Cairo, nosso irmão acreditou. Voltei para o Brasil sem um corpo para velar, enfrentando os olhares de compaixão. Carlos e sua esposa fizeram uma cerimônia de despedida simbólica, como se não bastasse ver todos os noticiários tive que ver um caixão vazio ser enterrado.
Tão jovem, eles disseram. E eu apenas concordei, enquanto os amigos de minha irmã contavam dos momentos que compartilharam com ela. Eu quis falar verdade. Dizer que Malu não fora carregada por tempestade alguma, que na verdade se jogara na boca de um demônio para salvar o mundo. Para me salvar. Contudo, não tive forças. Já carregava a alcunha de desolada, não aguentaria a de louca.
Aariak me ofereceu um lugar na Lucem, eu recusei de prontidão. Ernesto que compareceu ao enterro fantasioso tentou me convencer do contrário, mas segui firme. Vendi meu apartamento em Londres, larguei minha posição na Academia, Emily me ligou um milhão de vezes. Eu ignorei todas as ligações. Fiquei por meses nas ruas que crescemos, morando no apartamento que um dia fora de minha mãe. Carlos me visitou algumas vezes, trocamos meias palavras. Não tínhamos o que falar, perdemos nosso elo.
Vivi assim sem propósito por algum tempo, até que a família enlutada de Laura Payton me encontrou disposta a vingar a morte da parente. Eles e os outros membros da seita de Apófis queriam vingança, ainda alienados pelo sonho de serem especiais. Foi Lucem quem me salvou. Aariak veio em meio socorro, mesmo depois de eu ter amaldiçoado toda sua descendência. Culpei ela por perder Malu, depois de culpar a mim.
Eles me tiraram de uma emboscada da família Payton, que estavam preparados para me desmembrar lentamente. Fui trazida para o Reliquário, um local no sul da Croácia onde Lucem põe os agentes que possuem sequelas de alguma missão. É um lugar bonito, não há como negar. Consigo ouvir as ondas do mar pela janela do meu quarto, Malu adoraria passar umas férias aqui. Só férias, pois seria entendiante para ela a longo prazo.
Na minha primeira semana no Reliquário, uma caixa com os pertences de Malu me foram entregues. Coisas que ficaram em uma das centrais, dentre elas uma carta. Eu li cada palavra, ela já sabia o que aconteceria, desde o começo. Machucou ainda mais saber que eu não percebera que minha irmã mais nova estava ciente de seu final.
Malu pediu para que eu continuasse sem culpa. Mas como? Como se supera os se que penetram a mente todos os dias. A ausência dela impedia, ela não está aqui para dizer que sou obcecada e ruminante de pensamento. Ela se foi.
Mesmo assim, eu tentei. Sigo tentando. Giordano também está aqui no Reliquário, nos primeiros meses perdeu todo seu carisma e virou a pessoa mais amarga do lugar. Mal lembrava a si mesmo. Estava se adaptando a nova condição, sua superação,foi mais rápida que a minha, em um semestre ele começou a trabalhar ativamente na Lucem. Não nos falamos muito, não tenho coragem de encarar seus olhos. Voltou a ser o galanteador de sempre, ouvi dizer que está como voluntário em protótipos de próteses cervicais da organização. Eu, por outro lado, passei um ano como uma morta-viva vagando pelos corredores sem trocar nenhuma palavra com ninguém.
Depois desse período, a dor foi passando, tornou-se menos intensa dando espaço a uma saudade feroz. Fiquei com medo que isso significasse que já não me importava, mas estava só me curando. Aprendendo a conviver com a dor. Aprendendo a viver a dor sem controlá-la, como sempre fiz. Segui a terapia, continuei na reabilitação e fisioterapia. Chorei muitas noites com dores no meu braço amputado, o qual fantasmagórico me tortura até hoje. Permiti-me sofrer todas mágoas que recuei minha vida inteira.
Conheci a noiva de Edward mês passado, ela está grávida. Fiquei feliz por ele, está compartilhando a vida com alguém que pode preencher suas expectativas. Ele me procurou depois de tudo, muitas vezes. Mas em algum ponto desistiu, e quando retornarmos contato parecíamos amigos de infância que a distância afastara. Ainda nos amamos, de um jeito diferente. De um jeito que não dá para nos magoarmos. É melhor assim.
E agora, estou aqui. Olhando-me no espelho do banheiro que foi meu pelos últimos três anos, ainda desconfortável com minha nova prótese de última geração. Eu envelheci, tem vincos na minha testa e meu cabelo não poderia está mais ressecado, mas estou melhorando a passos vagarosos. Ainda sim, é um progresso.
Na minha cama, uma mala repousa. Finalmente, fechada. Não vou permanecer no Reliquário, é hora de partir.
Não desista, você tem muito a fazer. Ela escreveu na carta. Não desistirei.
As batidas na porta me despertam do meu transe reflexivo.
— Pode entrar. – falo, saindo do banheiro.— Bom dia. Você está pronta para sair? – Ernesto pergunta.
Ele faz parte da Lucem agora, Sora desapareceu completamente. Eu também o faria se pudesse. O cubano, entretanto, seguiu de maneira inesperada junto aos resultados da missão. O mais indiferente de todos, mostrou-se o mais leal.
— Estou. Pode me ajudar com a mala? – sorri gentilmente.
— Claro. – disse, pegando o objeto.
Andamos juntos para fora dos dormitórios. Aariak estava encostada no capô do carro, esperando-nos.
— Está pronta para sua primeira missão como agente oficial da Lucem? – perguntou, sorrindo sem abandonar a postura militar.
— Claro. – sorri em reposta.
E assim partimos, nosso destino era um dos quarenta e cinco sítios arqueológicos encontrados no leito do Rio Xiaoquing, na China. Em direção a um novo fim de mundo.
VOCÊ ESTÁ LENDO
LINHAGEM [CONCLUÍDA]
Historical FictionEm 2526 a.C., a Quarta Dinastia Faraônica reinava próspera e plena no Antigo Egito. Sob a proteção dos deuses, a realeza desfrutava de uma realidade luxuosa, enquanto servos se sacrificavam para atender os caprichos dos nobres. Até que uma mulher, t...