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"Quem elegeu a busca, não pode recusar a travessia" - Guimarães Rosa

Londres, maio de 2012.

O dia estava iluminado, o sol desbrava as poucas nuvens no céu com violência. A noite passada tinha sido chuvosa, o Tamisa ameaçou alagar, mas recuou com o amanhecer. Amanhã toda a equipe da expedição embarcaria para o Oásis Dakhla, onde começariam o trabalho arqueológico.

Tinham se passado duas semanas desde o rompimento com Edward, e ela não podia negar a pulsante saudade que sentia do companheiro. Principalmente, quando zapeando os canais da TV encontrava um episódio de Law & Order, o seriado favorito dos dois. Keith sentia o mesmo, ao receber a notícia da separação se comprometeu em esperar a mulher até o momento em que ela se recuperasse. Eles se amavam genuinamente, mas isso não era suficiente.

- Como se sentiu quando ele foi embora? - a voz acolhedora perguntou.

- Ele quem? - replicou Antonia que estava distraída olhando pela janela do consultório.

- Seu pai, Antonia. - respondeu a psicóloga pacientemente - Você não quis falar sobre ele na última sessão.

- Eu não lembro muito bem. - continuou olhando para o horizonte, a vista privilegiada do Big Ben pagava bem as duzentas libras por hora.

- Antonia, preciso que se concentre. - a mulher começou mais assertiva - Se você quer realmente fazer progresso deve ser sincera.

Edith Wilson se aproximava dos cinquenta anos, tinha vinte e dois anos de carreira e por mais que amasse a profissão, às vezes alguns pacientes conseguiam quase lhe tirar do sério. Aquela na sua frente era um desses casos, principalmente por causa da inteligência aguçada que a habilitava em fugir das perguntas. A sessões de terapia eram em algumas ocasiões uma caçada sorrateira.

Antonia se voltou para mulher e analisou o rosto receptivo, os óculos flutuantes traziam uma sutil seriedade a terapeuta. Atrás dela uma série de fotografias completavam o ambiente maternal da sala, em uma delas um rapaz sorridente com um bebê em seus braços. A foto tinha sido tirada no dia do parto, o ambiente hospitalar em segundo plano demonstrava isso. Um pai feliz e contente com o nascimento do seu filho, que provavelmente era o primeiro.

Andrade se sentia estúpida por está ali, por precisar de alguém que a guiasse para aprender a lidar com os próprios sentimentos. Era difícil demais suportar o fato que depois de superar tantos obstáculos, não tinha conseguido se tornar autossuficiente emocionalmente.

- Ele nos levou ao parque na noite anterior. - começou voltando a visão para janela - Era a festa da padroeira da cidade, a igreja local tinha organizado uma quermesse. Nós nunca tínhamos ido para a festa comemorativa...

"De repente o cheiro de bolo recém-assado inundou o ar, junto com um calor nordestino que rompeu com a primavera londrina. Ela e os irmãos eram crianças outra vez e observavam em silêncio os pais discutirem, a mulher parecia irredutível enquanto untava uma forma. Já o marido assumiu  uma posição suplicante, implorava para poder levar os filhos a quermesse da cidade.

Era aniversário do pequeno município, uma procissão tinha acontecido mais cedo e a noite toda a população se juntaria na pracinha para disputar os brinquedos do parque itinerante. Ivone se recusava todos os anos deixar os filhos participarem da festa, a família era protestante e deviam seguir a doutrina pentecostal. E isso excluía comemorar uma padroeira católica, além disso o dinheiro que tinham não  podia ser destinado para esses pequenos luxos.

A discussão tomou um tom acalorado até que por fim, a mulher cedeu cansada e ocupada demais para alongar a briga. As crianças ficaram exultantes, seria a noite perfeita e pela primeira não seriam os únicos a ficar calado nas aulas que sucediam a festa.

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