VIII

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"A piedade supõe uma condição de superioridade e a gente só pode se compadecer de quem sofre mais do que nós." - Rachel de Queiroz.

Antigo Egito, 2526 a.C

Kytzia seguiu sua trajetória pelo palácio, dessa vez ouvia as serpentes sibilirem atrás de si. Sentia o regojizo de Apófis com o sangue consumido, desde o ritual os dois pareciam intimamente ligados. Apesar da cortesã odiar o demônio, naquele momento seu objetivo era outro. Iria dizimar cada membro da dinastia, depois ia matar sacerdotes e servos de alto escalão como crédito pessoal, pela humilhações que tinha enfrentado enquanto cortesã. Apreciaria a dor daqueles que a usaram como objeto de regozijo momentâneo.

Esvaiu de sua mente as lembranças da noite passada, ainda que sua consciência por vezes a alertasse da decepcionante atitude de Madu, além da crueldade infinita de Apófis.

Agora, no entanto, que o Faraó jazia como uma vaga lembrança de sua existência, sua próxima vítima seria a rainha. Pouco a pouco todos pagariam.

Hetepheres I, ou a bruxa dos sapos, como todas as concubinas decidiram chamá-la após o terrível episódio dos sapos. A esposa do Faraó odiava com todas as moléculas de seu corpo as cortesãs, e uma vez decidiu jogar dezenas de sapos na piscina do aposento das jovens, que ficaram um dia inteiro de verão sem poder se refrescar.

Mas agora, a rainha dos sapos conheceria as serpentes, e como na natureza seria devorada sem nenhuma piedade. E assim, o foi. Kytzia não conseguiu desmanchar o sorriso enquanto via os olhos da rainha desesperados, a vingança era um adorável mergulho no desespero de suas vítimas.

Depois da rainha era vez de sua filha, Hetepheres II, nessa a moça não se demorou muito. Não tinha nada contra a princesa, além dos olhares de repugnância que vez ou outra ela lançava as concubinas. Depois da jovem princesa seria a vez de Djedefré.

Ainda que Kytzia estivesse em um estado de puro tupor, sua mente paralelamente lutava contra os sibilares das cobras e prazer silencioso de Apófis. Seu corpo naquele momento reproduzia os movimentos de maneira mecânica, apesar dela gostar de todo o desenrolar da trama e sentir-se aliviada de dispersar sua raiva e angústia. Devaneios a dominavam esporadicamente, temia não ser forte o suficiente para conseguir matar o príncipe. Sentia a raiva da conivência de Madu para com seu sofrimento, e o pior de tudo sentia compaixão por Djedefré.

Ela nunca tinha amado o príncipe, mas isso não anulava o fato de que tinham passado meses juntos. Rephael era é dono de seu coração, mas Dje a tinha protegido e era visível em seus olhos que possuía um sentimento genuíno por ela, mesmo que esse sentimento disputasse com a necessidade de aprovação do pai.

Djedefré não era uma pessoa ruim, se compadecia com os pobres e sempre tratava a todos bem. Tinha sido um poço de doçura do início ao fim com Kytzia, muito mais que Rephael, o qual mais de uma vez se aborreceu e esbravejou palavras rudes contra ela, em momentos de estresse. No entanto, nem as palavras mais duras do hebreu e as declarações mais afetuosas de príncipe tinha conseguido reverter a situação amorosa.

Até o início da noite ela não tinha resgatado as lembranças com o príncipe, mas agora elas a surravam sem complacência. Tentou atrasar os passos que a levariam para o quarto, mas foi em vão, uma corrente elétrica fluía por suas artérias despertando um poder e fome crescentes.

Quando finalmente chegou, abriu a porta cautelosa. Djedefré, assim como os outros, estava paralisado. Seus olhos estavam serenos, no momento que enxergaram Kytzia suas pupilas se dilataram.

"Chegamos em uma parte delicada, minha linda cortesã. A hora em que você me doa o seu lindo amante, depois poderá viver com seu amante hebreu. - havia um débil ironia nessa última parte -Prove-me sua fidelidade, sei que me odeia, mas saiba que mais tarde saberá que sua infertilidade é uma benção. Não existe crueldade maior do que condenar um ser inocente a existência. " - Apófis cochichou em sua mente.

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