002|ɴᴏᴀʜ

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Abro os olhos e encaro o teto do quarto, parcialmente iluminado pelas luzes que vêm da avenida e entram pela janela aberta. Empurro o cobertor para o lado e me levanto da cama, sem camisa, indo em direção à sacada do apartamento.
Meu maço de cigarros continua no lugar onde o deixei na tarde anterior, antes que eu caísse no sono. O vento é quase ameno, e pássaros cantam do lado de fora do apartamento.
Por mais incrível que possa parecer, a essa hora eu consigo ouvir mais os pássaros do que os poucos carros que cruzam a avenida. Confiro as horas: 5:15 da madrugada. Acho que esse é o único horário em que isso seria possível.
Em instantes, milhões de automóveis vão invadir as ruas e ninguém vai ouvir ou sequer pensar nos pássaros. Eles vão continuar ali, exercendo suas funções e cantando o mais alto que podem. Mesmo assim, tudo ao redor vai parecer engoli-los.
Mais uma vez, eu me sinto como eles, engolido e ignorado.
Só que eu sou incapaz de voar para longe.

....

— Eu já te disse que não sei por que você tem essa bosta de celular?
— Não enche, Sabina. O que você quer?
— Quero lembrar você do nosso compromisso. Quer dizer, queria três horas atrás. Agora, eu só quero te matar, porque você está super atrasado e eu já cansei de ligar e você não atender esse celular. Não sei nem por que eu insisto em...
— Sabina, ok. Calma, relaxa. Chego aí em meia hora! Dá pra você me esperar?
— Eu tenho escolha? — ouvi seus resmungos contrariados.
— Não, não tem.
Desligo o celular e atiro-o no sofá. Espreguiço-me e olho ao redor do apartamento: uma bagunça. Eu vivo sozinho em um dos poucos apartamentos residenciais da Avenida Paulista, no coração de São Paulo. Correria, preguiça e procrastinação são as principais razões pelas quais meu apartamento está sempre uma bagunça. De qualquer forma, eu já tenho bagunças de mais em mim para tentar colocar em ordem. Aquela sala vai esperar um pouco mais.
Entro no quarto e abro a porta do guarda-roupa, encarando as inúmeras blusas pretas e me perguntando o que as diferencia. Além da estampa de alguma banda de rock ou indie, todas são basicamente iguais. Sem falar que, exceto pela Sabina, ninguém repara em mim ou nas minhas blusas. Então, que seja.
Puxo a primeira camisa do cabide e a visto, esticando-a sobre as tatuagens que contratavam com a pele "super clara você precisa pegar um sol", como a Sabina chama. Deixem o sol onde ele está, estou bem assim.
Ajeito o cabelo me olhando no espelho, armando um topete como o do James Dean. Eu me inspiro nele, só que o meu fica bem mais feio e desgrenhado. Tanto faz.
Pego a carteira e o celular. Atiro o maço de cigarros e um livro que estava sobre a escrivaninha numa bolsa que minha mãe chamaria de tira-colo. Eu a chamo apenas de bolsa.
Ou porta-trecos.
Tomo a última pílula branca do frasco — sem água — e a sinto arranhar minha garganta. Expiro devagar e tranco a porta do apartamento, descendo as escadas apressado, já estou bastante atrasado. Subo na bicicleta que fica no hall do prédio e saio em disparada pela rua. Logo alcanço a pista central da avenida, que recentemente recebeu uma ciclovia. Seria perfeita pra mim, se não fossem os turistas e demais idiotas que ficam parados como se fizessem parte dela, tirando fotos dos prédios — como se precisassem ser eternizados e não apenas ser os prédios fixos que são — e me impedindo de chegar mais rápido onde quer que vá.
Continuo pedalando e desviando de transeuntes na ciclovia, quando vejo o horário estampado em um daqueles relógios eletrônicos que também mostram a temperatura, do lado direito da avenida.
17:12.
Droga. Tínhamos combinado às 14 horas!
Um leve sorriso surge no meu rosto só em pensar como a Sabina deve estar com ódio de mim.
Avisto nosso ponto de encontro do outro lado da avenida, à minha esquerda, e ela está na porta, com um copo de Starbucks quase vazio nas mãos e me fuzilando com o olhar. Agora, dou um sorriso largo, o que a fez revirar os olhos de raiva.
Enquanto me aproximo, eu me preparei psicologicamente para o sermão que receberei em instantes.
— Noan — ela diz alto com a pronúncia errada, só para me irritar. — Odeio você, e nunca mais eu...
— Que saudade de você também, Sabina — respondo quase irônico, saltando da bicicleta e dando um abraço que a tira do chão e silencia. Dois pontos para mim.
Na verdade, tirar do chão é tarefa fácil quando o corpo a ser abraçado tem pouco mais de um metro e meio. Ela reluta no ar e me dá soquinhos para que eu a coloque no chão. Duas ou três pessoas nos encaram e continuam andando, apressadas.
— E para sua informação, é Noah — repito dando ênfase à acentuação correta.
— Você é um idiota. Um idiota brasileiro com o nome francês. É Noan porque é como se pronuncia no francês. E também é como está escrito na sua identidade. E na...
— Sabina... — chamo na vã tentativa de interrompê-la de novo.
— ... E também como sua mãe te chama. Ela que colocou esse nome em você. Sempre vou te chamar de Noan. E, na próxima vez que você me deixar esperando, você vai ter que me pagar o Starbucks se quiser que eu te chame de qualquer coisa. Ou nunca mais vou falar com você.
Suspiro.
— Como é que a gente ainda sai junto?
— A pergunta correta é seu tatuador ainda vai atender a gente, né?!
— É... também tem isso. Trouxe os desenhos. Qual você vai querer? — pergunto, indicando a bolsa no meu ombro.
— Lá dentro eu escolho...
— Tudo bem — respondo, empurrando a porta pesada e escura que separa o caos da Paulista e seus barulhos automotivos das duas únicas coisas que se escuta por traz daquelas portas, o mantra oriental e o som reconfortante da agulha.
— E, só pra você saber, Noan é culpa da minha mãe que ama tanto a França a ponto de me dar o nome desse. Se te faz mais feliz, deixo você escolher um apelido, desde que você pare de me chamar disso, pode ser?
Seguimos mais para dentro do corredor pouco iluminado. A metade de cima da parede é pintada de vermelho e a metade de baixo é preta. Então, sinto um solavanco brincalhão no meu ombro quando a Sabina passa na minha frente pelo corredor estreito. É aí que a percebo: além do cabelo loiro cortada acima do ombro, ela está com uma blusa vermelha e um short curto preto. O coturno de couro em bala seus pés enquanto ela pula alegre demais para quem vai fazer mais uma tatuagem escondida.
Dou de ombros.
Chegamos à sala do tatuador no fim do corredor, e ele nos olha com uma cara muito, muito feia.
— Desculpa a gente, Seu Olavo... — a Sabi diz com biquinho que convenceria um barman a encher seu copo, apesar do seus 17 anos. — Tivemos um probleminha que fez o Noah atrasar... Prometo que não vai se repetir!
Seu Olavo coça a enorme, lisa e branca barba oriental por trás do balcão, e minha vontade é cair na gargalhada. É quase inacreditável que esse seja um dos melhores — e mais desconhecidos — tatuadores de São Paulo.
— Tudo bem, Sabina — ele responde lentamente e com sotaque carregado. — mas, na próxima vez que isso acontecer, expulso os dois daqui. Eu não sou um palhaço.
De novo, preciso olhar para os lados para segurar o riso, a dragões por toda parte, Luminárias redondas e coloridas, plantas que sei que são orientais — que são bonitas, brancas, pequenas e delicadas — e pratos decorados, leques imensos que jamais comprimiriam sua função pelo simples fato de serem grandes demais e vários outros escritos japoneses, cujo significado não faço ideia.
— Claro que não é, Seu Olavo! E prometo que não vai se repetir — ela diz quase sensualmente, e, mais uma vez hoje, quero rir. Mesmo assim, eu me seguro. Sei que se eu soltar um ar de risada sequer, Seu Olavo faz sushi de nós dois.
Entramos na salinha que fica atrás da divisória com balcão e lá estão todos os aparatos tradicionais de um tatuador. A Sabi olha pra mim como se me perguntasse se quero ir antes. Dou de ombros indico com os olhos que ela pode se deitar primeiro.
— O que vai ser hoje, menina? Uma florzinha? — Seu Olavo brincar, mas eu e Sabina não achamos graça.
— Esse aqui — ela responde, entregando o desenho. É uma pequena silhueta simplista de São Paulo. — quero aqui, no pulso — ela indica, esticando braço.
— Delicada, você — ele comenta devagar, sem ironia dessa vez. Depois, ele se senta, coloca as luvas, pegue o material de que precisa e se posiciona agulha sobre a pele clara de Sabina. O zunido começa, e sei que a tinta está agora sendo fixada ali.
Eu me sento em um banco próximo e puxa o celular do bolso. Há três mensagens da minha mãe.
Noah, estou tentando falar com você há dias, mas você não me atende. Está tudo bem?
Filho, maman está preocupada! Como você está?
Noah, se você não responder essa mensagem, pego o próximo voo de volta pra São Paulo e caço você.
A verdade é que ela nunca se importou. Não sei por que finge ser importar agora.
Maman, você não é francesa. Pode parar com isso. Já basta o meu nome. Estou bem, e vivo. O que você quer?
É tudo o que eu teclo envio.
guardo celular no bolso e olho de volta para a Sabina, que me encara confusa.
— O que foi?
— Maman? — ela questiona baixo, imitando o sotaque que tanto detesto, e lança um olhar na direção do bolso onde guardei meu celular.
— Como é que você sabe? — bufo, sabendo que não adianta tentar esconder algo da Sabina. Ela é libriana mas sensitiva e bizarra ( de uma forma em que as duas coisas combinam ) que eu conheço.
— Você sabe que, quando vê-la, vai precisar fazer uma cara um pouco mais agradável, né?
— Vai ser um tanto quanto difícil...
eu me distraio olhando para as paredes. Depois, encaro os ponteiros do relógio se mexerem. Tiro o livro da bolsa, leio algumas frases, mas não consigo concentrar muito. Esperar qualquer coisa tem sido um suplício, deixar minha mente vagar, solta, é um perigo. Sinto que minha ansiedade está piorando quando ouço Seu Olavo me desperta do torpor.
— Rapaz! Sua vez!
Ele estala os dedos em frente ao meu rosto e eu me levanto, enquanto a Sabi salta da caldeira. Eu me acomodo no lugar onde Sabi estava e a vejo sentar no meu antigo lugar. Depois, estico o braço e indico o local da minha tatuagem. Acima do pulso, no meio do braço.
— Aqui — aponto.
— E qual é o desenho? — Seu Olavo pergunta, entediado, colocando novas luvas.
— Esse.
Estico para ele o papel que estava guardado e vejo em seus olhos uma expressão surpresa.
— Uau — ele diz, baixinho. Sabi sorri, mesmo sem saber do que se trata o desenho. Eu me sinto quase feliz em saber que surpreendi o velho tatuador oriental.
— Quem fez isso, rapaz? — ele questiona e eu sorrio, quase sacana.
— Eu.
Ele pondera, alternando o olhar entre mim e o desenho.
— Imagino que não queira me dizer o que significa — ele continua sério, me encarando como se fosse capaz de ler minha mente e conhecer meus segredos mais íntimos. Sinto certo desconforto e recolho o braço.
— Diz mais sobre você do que parece — ele completa, por fim.
— É... suponho que sim — respondo, soando vago e voltando o braço para ele para, segundos depois, sentir a agulha perfurar minha pele e a tinta gravar meu desenho em mim.
A tatuagem é um coração quase literal, não a representação comum. Tem o formato de um coração humano, no entanto, não é feito de músculos e veias. É feito de ondas agitadas bem desenhadas e delicadas. É arredio, mas é consistente. Não sei bem explicar, mas, realmente, diz muito sobre mim.
Sabina se inclina na cadeira, curiosa, e quando vê o desenho solta outro suspiro.
— Caramba! Quando foi que você fez isso? — ela pergunta, extasiada.
Dou de ombros.
— Essa semana... Abri o caderno de desenhos e ela simplesmente saiu... Foi bem legal.
ela volta para a cadeira e me encara, como se soubesse que estou escondendo algo, mas não e interroga. Respeita meu espaço e meu silêncio, e sei que ela voltará no assunto em breve.
— Acho que é o seu melhor desenho — ela comenta, baixinho.
— Eu também acho.

....

Quase uma hora depois, a tatuagem fica pronta. Seu Olavo limpa o excesso de tinta, e, a medida que vejo o que fica em minha pele, arrepio.
Está melhor do que eu imaginei.
Eu a olho pelo espelho para ver de uma forma mais geral e, agora, acho que está perfeita. Sabina para ao meu lado e aproxima seu pulso do meu braço e só então noto que tatuamos no mesmo braço praticamente no mesmo lugar.
sorrio pela percepção.
Sabina saca o celular da bolsa e tira algumas fotos. Pelo reflexo no espelho, Seu Olavo encara a nós dois. Por algum motivo, não consigo de decifrar seu olhar.
Saímos da salinha e vamos até o balcão para pagarmos Seu Olavo pelo serviço muito bem prestado. Eu me apresso e chego ao caixa antes da Sabi, que tenta pegar a carteira na bolsa. Eu intercedo. Tiro meu cartão da carteira e mostro para ela.
— Presente meu — aviso, sabendo que ela vai argumentar. Seu Olavo está com os pequenos óculos de leitura, e nos observa por cima deles.
— Nem pensar — ela reluta — Você já fez o desenho da tatuagem, já está de bom tamanho.
— Cala a boca, Sabi. É um presente.
Ela me encara em silêncio e, aos poucos, baixa aguarda. Ela é um pouco teimosa, mas não mais que eu. Por isso, ela cede. Depois que pago as tatuagens, voltamos lentamente — e lado a lado — pelo estreito corredor vermelho e preto pelo qual entramos.
— Você não precisava ter feito isso. Sabe disso, não sabe?
— Sei. Mas, não tem problema. Eu quis. Você sabe, não sabe?
— Sei mais ou menos. Não gosto de pensar que estou gastando dinheiro da sua mãe...
— O meu dinheiro — interrompo — Ela faz questão de me dar uma quantia mensal, como se isso substituísse a presença dela. Já esqueceu?
— Não, não esqueci. E ainda lembro como você brigou quando ela forçou você a usar.
— É. Mas, sinceramente — monto na bicicleta que deixei parada na entrada enquanto Sabi abre a porta que dá pra calçada —, não ligo mais. Melhor gastar o dinheiro com o que eu quero. E ela continua lá em Paris fazendo o que ela quer. Contanto que ela não venha até aqui, tudo bem.
Sabi bufa. Ela não gosta da forma como falo da minha mãe. Mas eu não gosto da minha mãe, então... É natural.
Saio do prédio com a bicicleta enquanto a Sabi, já do lado de fora, segura porta para que eu passe. Na rua, meu celular vibra e, no ato falho, pego e leio o nome do visor.
Maman.
— Alô? — olho para o Sabina, confuso.
— Alô, Noah! Estou no aeroporto! Onde você está?
Droga.
Não acredito que ela veio.
Ainda estou sobre a bicicleta, quando aceno um "tchau" apressado para a Sabi. Viro o guidão para o lado oposto da avenida e começo a pedalar, quando algo me atinge e desabo no chão, ouvindo um grito e vendo meu celular ir pelos ares.
Caio para um lado.
A bicicleta para o outro.
Meu celular está espatifado no chão, porém, ainda ouço a voz da minha mãe me chamar do pequeno aparelho, tem uma menina com o olhar ainda mais confuso que o meu próprio, e, por incrível que pareça, ela está entre a bicicleta, o chão e eu.

Meu celular está espatifado no chão, porém, ainda ouço a voz da minha mãe me chamar do pequeno aparelho, tem uma menina com o olhar ainda mais confuso que o meu próprio, e, por incrível que pareça, ela está entre a bicicleta, o chão e eu

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Xoxo

𝐀𝐒 𝐋𝐔𝐙𝐄𝐒 𝐌𝐀𝐈𝐒 𝐁𝐑𝐈𝐋𝐇𝐀𝐍𝐓𝐄𝐒 - 𝐍𝐎𝐀𝐑𝐓Onde histórias criam vida. Descubra agora