020|ɴᴏᴀʜ

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— Que sonho você ainda não realizou?
A pergunta é categórica, e não vou mentir em dizer que é inesperada. Nunca havia pensado sobre isso antes, mas, agora que a Sina está perguntando, eu me sinto estúpido por não ter uma resposta. Com certeza, ela sabe o dela. Mesmo assim, fico aliviado que o foco da conversa tenha mudado. Ao menos um pouco.
— Sinceramente, eu não sei.
Ela me encara com atenção, e sei que ela quer uma resposta mais elaborada, Na verdade, ela merece uma resposta mais elaborada. Cansei de me esquivar tanto. Há algo nela que faz com que eu queira me abrir. Não tem nem uma semana que a conheço e cada minuto que passamos juntos parece simplesmente não ser o suficiente, mesmo já parecendo muito.
É louco, e não sei como lidar com isso.
— Bom eu não sou um cara muito sonhador e ambicioso... Na verdade, sei que parece horrível dizer, mas eu realmente só quero lidar com um dia após o outro... E que ele não seja pior do que o dia anterior. Isso faz algum sentido?
A pergunta é retórica, por que sei que não faz o menor sentido para ela. Sei que ela não entende agora, mas entenderia se passasse um pouco de tempo a sós com meu cérebro. Não que seja culpa dela, é só que... também não é minha. E tê-lo na minha própria cabeça é um suplício.
— Na verdade — ela começa, depois de uma pausa — , acho que faz todo sentido.
Olho para ela totalmente surpreso.
— Faz?
— Totalmente. As pessoas estão tão preocupadas com o futuro, que se esquecem de viver o presente... E se programam para o que não fazer lá, mas elas piram se algo por aqui dá errado. Não tem um plano B, não tem uma rota alternativa... E acabam atropelando tudo.
Acho graça à menção do atropelamento e olho para ela com um sorriso sutil. Ela capta, sorri de volta e continua.
— Eu tenho planos, coisas que quero que aconteçam comigo no futuro e um caminho que quero seguir até chegar lá... Mesmo assim, quero trilhar todo o caminho e ir aprendendo com tudo o que estiver no trajeto, sabe? Não quero ter tanta pressa a ponto de não olhar para o por do sol... Não quero temer pegar um atalho ou na mão de um desconhecido por medo do que podem ser perigosos... Você me atropelou na paulista, que não era um atalho... E bem, tenho conhecidos que são mais perigosos que você.
O que ela fala faz muito sentido na minha cabeça. E agora quero sorrir de verdade, porque a franqueza dela é engraçada e sensata, e ela faz tudo parecer tão natural...
— Eu posso ser perigoso — respondo num sorriso, que me entrega completamente como algo inofensivo.
— Conheço pessoas com o sorriso como o seu, Noah. O maior risco que eles representam só me afetará se eu permitir.

....

— Algo que você detesta nas pessoas? — pergunto enquanto subimos a Paulista de novo. Já está quase na hora de eu voltar ao trabalho.
— Superficialidade — ela responde quase em tempo recorde. — Algo que você detesta em você? — ela devolve.
— Você precisa fazer perguntas que eu consiga responder em uma frase, não em um monólogo — respondo em tom de brincadeira, mas sei que é verdade. Responder aquela pergunta levaria tempo demais.
— Algo que você gostaria que todos reconhecessem em você, então. Paramos no semáforo do último quarteirão.
— Algo que eu mesmo ainda não reconheci... Imagino que eu tenha algo de bom. Todos temos, né?!

....

Quando saio da livraria, exausto com o movimento do dia, uma lufada de vento mais fria que o esperado me acerta em cheio. Estou sem casaco, então, apenas cruzo os braços e os esfrego por um momento, em uma tentativa frustrada de me aquecer. Eu me pergunto que horas a aula da Sina termina, e me pego pensando em como seria legal encontrá-la agora. Mesmo sendo uma ideia louca, mando mensagem pelo Facebook, que já consigo usar pelo celular.
Sua aula já acabou? Se estiver por aqui, poderia me responder o que salvaria da sua casa caso ela pegasse fogo?...
Aperto "enviar" e espero.
Acendo um cigarro enquanto isso, puxo a fumaça e sinto ela esquentar meu tórax à medida que preenche meus pulmões. É um calor imundo, mas quase confortável. O celular vibra.
Seu louco é quase meia-noite! Cheguei em casa há alguns minutos. Te encontraria se já não tivesse trocado de roupa e tudo mais. Pode ser amanhã? Com sono que eu estou, salvaria minha cama. Isto é, provavelmente, estaria dormindo tanto que nem eu nem ela nos salvaríamos do incêndio, mas... Vá para casa!
Já vou.
Minto.
Está mais frio do que eu esperava e estou sem casaco. Vou comprar uma batata do McDonald's para comer enquanto vou para casa. Já te chamo de novo, se você ainda não tiver apagado. Beijão.
De fato, passo no McDonald's, mas acabo comprando uma promoção inteira, peço a embalagem para viagem e vou para casa. Destranco a porta com o máximo de silêncio que sou capaz e avisto minha mãe dormindo no sofá pela luz que entra do corredor externo e do hall  do elevador. Isso quase me alegra, não fosse o fato de ela ainda estar aqui.
Ignoro-a, tranco a porta com a mesma calma e vou para o quarto devagar. Fecho a porta e só então acendo a luz. Conheço meu apartamento bem o bastante para andar no escuro sem ter problemas, então...
Coloco a sacola com o sanduíche sobre a cama — que está milagrosamente arrumada pela dona Wendy — e me sento para tirar o sapato, sentindo a liberdade que é colocar os pés descalços sobre um chão fresco, depois de um dia em pé.
Eu me espreguiço e aviso o carregador do meu notebook embaixo da escrivaninha. Como ele foi parar ali? Conecto-o no notebook, ligo o computador e abro o Facebook. Sabi e Sina, minhas duas únicas amigas ali, estão com bolinhas verdes na frente dos seus respectivos nomes.
Para Sabi envio um "Oi", para Sina envio um "Cheguei. Me indica um filme?"

𝐀𝐒 𝐋𝐔𝐙𝐄𝐒 𝐌𝐀𝐈𝐒 𝐁𝐑𝐈𝐋𝐇𝐀𝐍𝐓𝐄𝐒 - 𝐍𝐎𝐀𝐑𝐓Onde histórias criam vida. Descubra agora