019|sɪɴᴀ

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— Será que toda vez — começo a falar para ele, que está de costas, empilhando livros — que eu quiser uma resposta sua, vou precisar vir até aqui?
Ele vira, me encara, finge estar surpreso e me dar um abraço. Inesperado, mas bom.
— Se você continuar chegando no meu horário de almoço, sim, pode vem sempre aqui.
— Está no seu horário de almoço? — finjo surpresa. Sinceramente, ainda não estava botando muita fé quando Pepe me disse no outro dia. Ontem, no caso.
— Vou fingir que não sei que o Pepe te disse — ele responde, sorrindo, tirando o crachá e colocando no bolso. Por algum motivo, ele saber que o Pepe me disse me deixa desconcertada e sem reação.
Ele percebe e quebra o clima.
— Relaxa, ainda bem que você sabe. Bom, pelo que me lembro, te devo um Starbucks...
E eu já ia protestar, quando...
— E você ainda precisa me explicar qual é a do "Rei Noah e Mork". Não esqueci.
Ele pisca para mim e pega na minha mão, me levando para fora da livraria. Caminhamos por dentro do Conjunto até sairmos no quarterão de traz da Paulista para descermos a Augusta. Passamos por um McDonald's e por um Habbib's e atravessamos a rua, chegando ao Starbucks que fica na esquina. Nunca tinha ido ali, e é menor do que eu esperava.
Lá dentro é quase engraçado: parece bem maior do que se visto por fora, e há ainda mais pessoas diferentes e alternativas do que na Paulista. É como um ponto de encontro ou algo do tipo. Mais é bem aconchegante, e é difícil manter a concentração no que Noah fala com tantas pessoas diferentes e coisas para se observar. Mesmo assim, eu procuro me focar nele.
— E foi desse jeito que eu consegui uma bicicleta para andar por São Paulo. Quer dizer, é claro que não consigo ir muito longe com ela. Moro na Paulista mesmo, então, tem tudo por perto, ou o metrô... Não preciso de um carro.
— Entendi. E onde você gosta de ir pela cidade?
Ele se demora um minuto, pensando. Estamos na fila do caixa, mas há pessoas na nossa frente.
O Starbucks está tocando uma música que nunca ouvi, mas, Noah parece cantarolá-la sem deixar a voz sair da sua boca, assim, só mexendo os lábios. A música é lenta e agradável.
— Bom, vivo por esse arredores na Paulista, como no dia em que a gente se conheceu... — quando ele diz isso, sua expressão fica engraçada, e prefiro ignorar a tentar entender. — E quando não estou lá... Gosto muito de ir ao Bixiga.
— Qual o nome dessa música? — interrompo o assunto, mesmo querendo saber mais sobre o Bixiga do que fato sei.
Ele me olha como se não esperasse a pergunta.
— "Open". É de uma cantora chamada Rhey. A Sabi me apresentou alguns anos atrás.
Sinto uma pontinha de ciúme infundada da Sabi. Ela parece uma menina legal, é tudo o que sei sobre ela. E ela também gosta dos mesmos filmes que eu, como descobri no Facebook dela. Talvez um dia a gente se fale mais, mas, por enquanto, quero saber mais de Noah.
Ele é tão enigmático, e abre um novo quebra-cabeça mesmo quando revela algo sobre si. A tanto nele para descobrir... Ainda assim, tenho a sensação de que, por mais que eu passe todas as horas que posso ao lado dele — que é algo que eu adoraria fazer — , jamais saberei tudo. É como um livro excelente, que você lê querendo devorar e chegar logo ao final mas sem querer perder o recheio. O que deixa o final longe... muito longe.
— Não conheço. Mas achei legal. Voltando ao Bixiga...
Ele sorri.
— Sim, ao Bixiga. Adoro lá, tem as melhores cantinas da cidade!
— Nunca fui — confesso. — Moro aqui desde que nasci, mas, sei lá... Só nunca fui. Acho que sempre tem isso, né? A gente mora em algum lugar e não dá valor às coisas da cidade e tal. Aposto que tem um monte de lugar maravilhoso aqui em Sampa onde nunca fui.
— Se você deixar, te apresento os meus favoritos.
É a nossa vez no caixa, e eu não o respondo. Mas eu deixo. Eu deixo.

....

Hoje não peço o Frappuccino. Na verdade, trocamos de pedido. Ele pede um Frappuccino
de caramelo e eu peço o chocolate.
Nos copos, estão "Rainha Mork" e "Noah". Obra dele, claro. Sem falar na dificuldade que foi para o atendente conseguir escrever "Mork" e "Noah". Tivemos que soletrar.
— Bom, se eu bem me lembro, você me deve Amélie... E, agora, me deve também me apresentar a algum lugar da cidade.
Ele me encara com a cabeça baixa, a boca no canudo no copo, os olhos claros, brilhando.
— Posso te levar aonde você quiser. É só você dizer quando quer ir.
Algo na forma como ele diz as palavras me arrepia, mas disfarço.
— E o filme? — provoco.
— Lá em casa, na quinta. Pode ser? É meu dia de folga.
— Aceito. Mas, fique sabendo que se você tentar se engraçar para o meu lado, eu sei me defender.
— Madmoiselle — ele diz de uma forma engraçada — , posso ser um cavalheiro. Não está nos meus planos me engraçar para o seu lado. Eu me divertiria mais se a gente se engraçasse lado a lado.
Sorrio para ele, sem graça.
— Adoro quando você sorri.
A frase dele sai como uma confissão e eu quase faço o mesmo, dizendo que amo o sorriso dele. Também amo quando ele exibe os dentes assim, com os olhos brilhando. É como se ele, por um segundo, baixasse a guarda que sei que ele mantém alta, e me sinto lisonjeada. Fazê-lo sorrir é divertido.
— E você ainda não me contou porquê do "Rei Noah" e "Mork". Estou esperando.
— Ah, você está esperando? — devolvo, recostando na cadeira. — Estou esperando você me responder no Facebook também, senhor Noah. Sabia que não se deve deixar uma pessoa falando sozinha?
— Tive imprevistos — ele responde vagamente, e sorri ao ver a minha cara de "essa resposta não foi suficiente". — Brincadeira... Meu computador descarregou, e, enquanto eu procurava o carregador, a Sabi chegou lá em casa. E me tirou de lá... Não sei como te responder no celular.
Algo no jeito dele me diz que ele está dizendo a verdade.
— Você realmente não entende muito dessas coisas, né?
Ele dá de ombros e se encolhe como uma criança pega no flagra.
— Não... não achava que era tão importante até conhecer você — ele diz, me acertando em cheio.
— Cadê o seu celular? — pergunto quando consigo retomar as palavras. — Vou te ensinar.
Ele me entrega o aparelho, que é muito sofisticado.
— Como você tem uma coisa dessas e não usa? — desbloqueio o aparelho. A foto que está no fundo da tela é uma imagem maravilhosa de São Paulo, que não sei bem de onde foi tirada. — Uau! Onde é isso? — pergunto sem esperar a resposta anterior. Ele me deixa tão surpresa... — Aqui em São Paulo. No topo do MAC?
— MAC? Sei que não é a maquiagem. — e sorrio.
— Não mesmo. — ele também. — Museu de Arte Contemporânea. E se você conhece, né?
A pergunta dele, apesar de ser inocente, faz com que eu me sinta estúpida. Onde eu estive todo esse tempo?
— Conheço, mas nunca fui lá... Só passei pela porta... De carro.
— Incluirei isso no nosso roteiro, então.
Ele fala num tom natural e, por mais que eu o conheça pouco, acredito que ele, de fato, fará o que diz. E acredito também que será agradável. Estar perto dele tem sido sempre uma surpresa agradável, isso também é novo e diferente.
— Ok... voltando... — conecto o celular dele a rede wireless do Starbucks. Baixo o aplicativo do Facebook e do chat, e mostro para ele.
— Aqui, olha. É fácil.
Ele toca na tela e, então, percebo como as mãos dele também são bonitas. Diferente das minhas, as dele são claras e os dedos são bonitos. Há veias sobressaltadas também. Sinto vontade de tocaá-las, mas me controlo. As unhas são roídas, mas até isso é charmoso. Diz algo sobre ele que ainda não entendo.
Rapidamente ele aprende como se faz, e me manda uma mensagem rápida de teste.
Teste.
Ele é bem literal, e sorrimos juntos.
Cubro minha boca com a mão em um gesto automático, então, pouso uma das mãos no rosto do Noah e a outra no copo com chocolate. Ele levanta o olhar no mesmo segundo, e é como se um choque passasse pelo meu corpo inteiro. Já nos tocamos antes, mas algo agora é diferente. Estamos próximos demais, e não quero me afastar. Ele também não se afasta. Então, eu pigarreio.
— Rei Noah e Mork são personagens de Madagascar — explico com meus olhos cravados nos dele, que parece nem piscar. — Eles são uma espécie de dupla, mas são bem atrapalhados... E engraçadinhos. Quando falei seu nome para o atendente aquele dia, ele riu e começou com a piada. E ainda levou a piada para outro atendente. Claro que achei super indelicado e... — ele agora me olha com um olhar indecifrável — fiquei com raiva, e ele continuou como se eu não estivesse ali. Então, ele me perguntou "Rei Noah e Mork?", e eu concordei. Por isso os nomes nos copos.
Ele me encara mais uma vez e quase tenho medo de ele estar com raiva da piada. Já estava pensando que talvez eu não devesse ter mandado o rapaz ter escrito aquilo quando ele dá uma gargalhada que até me assusta.
— Não acredito. As pessoas têm dificuldade com meu nome, mas isso foi simplesmente genial! Nunca imaginaria encontrar um atendente do Starbucks que é fã de Madagascar.
Eu rio também.
— E, se você parar para pensar — ele continua — , nós somos mesmo meio atrapalhados, né? Quer dizer... olha como a gente se conheceu...
Sorrio com a lembrança. Eu odiaria qualquer outro que me atropelasse em plena Avenida Paulista enquanto vou para a faculdade. Mas, com o Noah eu não consigo. Simplesmente sou atraída pelo seu magnetismo.
Ele ainda sorri, e sinto que preciso manter aquele sorriso ali.
— Noah, o que você faz durante a semana? Exceto pela livraria, claro.
Ele me olha, surpreso com a pergunta, um sorriso fácil nos lábios.
— Não sei, sinceramente. Não faço muita coisa... Basicamente, fico na livraria todos os dias de semana a partir das três da tarde, exceto na quinta. Até lá, estou sempre livre. E o seu estágio? Como é?
Mais uma vez, ele me responde uma pergunta de forma vaga, e eu continuo querendo saber mais. Mesmo assim, por algum motivo, respondo a pergunta dele sem insistir na minha.
— Bom... Meu estágio é de vinte horas semanais, ou seja, fico quatro horas por dia numa pequena distribuidora de filmes lá na Paulista. Geralmente fico das duas às seis da tarde, e de lá vou para o metrô para ir para faculdade, que era o que eu estava fazendo quando você me atropelou. — finjo estar sentida com o fato, mais sorrio logo em seguida, e ele faz o mesmo. — No restante do tempo, eu faço trabalhos, estudo, vejo filmes, me informo... Esse tipo de coisa.
— Entendi. Bom — ele dá de ombros e os encolhe em seguida — , eu gosto de trabalhar na livraria, e o nome diz tudo... Cultura. Sou fascinado. Antes mesmo de trabalhar lá, já era meu lugar favorito da cidade.
O olhar de Noah para em um ponto fixo da parede atrás de mim.
— Desde pequeno meu pai me levava lá e eu ficava horas mergulhado naquele mundo onde tudo era diferente e possível. — percebo que ele está divagando, nas lembranças do passado, imagino. Será que ele vai começar a se abrir? — uma vez por mês, eu saía de lá com uma penca de livros debaixo do braço, enquanto meu pai comprava vários discos de vinil ou CDs, filmes e coisas assim. Agora que trabalho lá, compro todos os quatro itens.
Então, seu olhar para em mim de novo e algo em seu semblante se ilumina. O sorriso preguiçoso volta a descansar no rosto dele.
— Que legal — comento com sinceridade. Há  algo na forma como ele conta qualquer coisa que me prende, e me faz querer observá-lo e ouvi-lo enquanto ele quiser falar. — E o quê mais? — eu me recosdo na cadeira.
— Nada...
Ele se fecha de novo e preciso usar todo o aprendizado com filmes ser uma atriz agora para não demonstrar minha decepção.
— Como nada? — pergunto em um tom calmo. — Não tem mais nada sobre você que queira me contar?
— Sina... Eu poderia te contar minha história em dez segundos.
— Duvido — desafio.
Ele sorri, mas sinto que não é um sorriso real. De novo, vejo a dor nos olhos dele. Quase me arrependo de tê-lo desafiado, e estou pronta para retirar o que eu disse quando ele respira fundo, como se estivesse forças.
— Eu realmente poderia, mas... — ele analisa as próprias palavras enquanto encara a mesinha entre nós. — Eu levaria bem mais de dez segundos para tentar arrumar a bagunça que ficaria em mim depois que eu contasse, e... com certeza você não me veria mais com os mesmos olhos e...
— Ei! Tudo bem — intervenho, colocando minha mão sobre a dele, que está esfriando e começando a suar. Por um momento, temo que ele aja como na última vez e saia correndo, daquele jeito completamente estranho, sem explicar nada. Não quero que isso aconteça de novo. — Não precisa contar nada. Está tudo bem... tudo tem seu tempo, certo?
— Certo. — ele expira devagar. Então, dá um sorriso tenso, como se tentasse me dizer que está bem. Sei que aquele sorriso não diz a verdade.
— Já sei! Acho que ainda tenho mais perguntas.
Ele sorri, visivelmente aliviado.

Até agora esse foi o maior capítulo que eu já fiz em toda a minha vida: 2270 palavras

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Até agora esse foi o maior capítulo que eu já fiz em toda a minha vida: 2270 palavras.
VOCÊS QUE LUTEM!
Se eu quisesse criar um grupo de wpp, vocês gostariam de entrar?
Xoxo

𝐀𝐒 𝐋𝐔𝐙𝐄𝐒 𝐌𝐀𝐈𝐒 𝐁𝐑𝐈𝐋𝐇𝐀𝐍𝐓𝐄𝐒 - 𝐍𝐎𝐀𝐑𝐓Onde histórias criam vida. Descubra agora