— Eu não estou louco — foi a primeira coisa que eu disse quando cheguei em casa.
Ironicamente aquela frase vinha sendo repetida por meses, meus amigos, meus pais, todos estavam cansados de me ouvir dizer aquilo, mas de repente, depois de três meses fora, aquela foi a primeira coisa que eu consegui dizer quando voltei.
Meu pai quis saber como eu estava. E eu estava bem, eu acho. Eu deixei o receituário médico sobre a mesa da cozinha e segui para o meu quarto. Os fones de ouvido abafaram a voz dele me chamando e querendo saber mais, querendo me fazer mais perguntas retóricas e receber mais respostas evasivas.
Meu quarto continuava exatamente igual, a cama com os mesmos lençóis brancos, a escrivaninha na frente da janela e o armário cheio de roupas comuns e alguns livros velhos.
Eu não sabia muito bem o que ia fazer quando chegasse em casa, eu sequer imaginava como seria estar de volta depois de simplesmente desaparecer, por mais que só tivessem sido três meses eu não sabia como seria voltar à vida normal.
Me perguntei se, ao voltar a dormir naquela mesma cama, eu tornaria a ter aquelas mesmos sonhos, se eu sentiria de novo aquela mesma sensação de queda vertiginosa e mortal.
Deixei minha mochila no chão e a primeira coisa que eu fiz foi arrastar a cama de lugar. Arrastei a escrivaninha e inverti tudo, deixei a cama na frente da janela e a escrivaninha no canto mais escuro do quarto.
Abri as cortinas e quis chorar com a visão da zona rural da cidade que se estendia ao fundo da nossa casa. Morávamos na ultima casa da rua, da ultima rua da cidade. Eu não gostava da visão das colinas e pastos, eu não gostava do som dos bichos e sapos durante a noite, nem de amanhecer com uma vaca debaixo da janela. Depois de três meses eu já havia me esquecido como era estar naquele lugar, de como era estranho o cheiro que vinha do mato, e como era solitária a vista da janela.
Eu fiquei durante três meses internado em um hospital psiquiátrico no Rio de Janeiro. Minha família jura não ter falado nada a ninguém, que a minha ausência havia sido justificada como férias ou curso de verão. Me mandaram para longe talvez porque não pudessem lidar com a iminência do que acontecia, com as crises de pânico ou com o remorso. Ninguém queria um filho doente, tampouco um filho louco, eu não queria culpar os meus pais por não entenderem bem a minha situação, queria não culpá-los pela desinformação, mas o exílio me deu tempo para pensar e as longas seções de terapia intensiva me deram material o bastante para responsabilizá-los por praticamente tudo o que me acometia.
Aquele não era um lar de amor, não era uma casa de afeição, as paredes sustentavam retratos falsos e em todos os cômodos havia um silêncio atormentador. Meus pais não se amavam, minha mãe tinha recorrentes ataques de nervos, bebia escondido e fumava no banheiro, enquanto meu pai chegava todos os dias tarde em casa e negava que tinha uma amante enquanto toda a cidade sabia, meu irmão mais velho assim que pôde foi embora fazer faculdade em outro estado e eu queria fazer o mesmo, mas ainda tinha minha irmã mais nova que me olhava com carinho e que parecia ser o único traço de amor de verdade naquela casa.
Arranquei das paredes os cartazes de filmes e pôsteres de jogos, joguei no fundo do armário tudo o que me lembrava à minha vida antes do hospital, inclusive os porta retratos que minha mãe teimava em deixar em cima da escrivaninha ao lado do computador. Aquilo tudo me deprimia.
Eles ouviram o barulho do arrastar dos móveis, talvez tenham me ouvido rasgar os pôsteres, mas ninguém apareceu na minha porta, ninguém bateu, ninguém quis entrar, eles sabiam o que estava acontecendo, e eu queria espaço, mas eles pensavam outra coisa, provavelmente que eu ainda estava louco ou minimamente perturbado. A música no fone de ouvidos repetia alto um fuck off e eu só queria poder desaparecer.
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VOLITARE | (Romance Fantasia Gay) | COMPLETO
Teen FictionVocê já sonhou que estava voando? Você já sonhou que estava caindo? Guilherme ficou internado durante três meses em um hospital psiquiátrico depois de uma suposta tentativa de suicídio e recorrentes sonhos e visões. Embora os médicos atestassem su...