Capítulo 31

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Naquela noite eu tive um sonho, mas quando abri os olhos eu o esqueci. Havia sido um sonhos simples e sem grandes conflitos, eu não havia chegado até o teto, mas acordei quando caí. Não houve alarde, nem desespero, só o susto da queda e um despertar truculento. Já era dia, mas ainda não era nem sete da manhã, mesmo assim eu me levantei da cama e deixei Diana dormindo.

Quando cheguei a cozinha encontrei Rosa fazendo um café e cantando sozinha. Fiquei quieto para que ela não notasse que eu estava ali e fiquei prestando atenção na forma como ela se movia rápida pela cozinha e na forma como ela sibilava as palavras de uma cantiga que eu não conhecia. Ela dizia melodicamente que as coisas tinham de ser como eram, sua voz era doce e compassada, belamente afinada e fazia parecer fácil cantar daquele jeito como um pássaro.

Talvez aquele fosse um bom jeito de começar o dia, com cantigas bonitas e simples, um jeito vago de esquecer o que aquele amanhecer premeditava. Rafael estava dormindo em outro quarto e não havia sinal de José pela casa, por hora eramos só eu e Rosa, ela cantando e eu oculto atrás dela encostado em uma parede pensando no quanto aquilo tudo era difícil.

Eu queria saber se existia um jeito fácil de encarar a vida, um jeito mais simples de enfrentar tudo o que surgisse sem me magoar ou sem me machucar daquele jeito. Rosa cantava a resposta para mim sem saber que eu ouvia, e eu sentia aquelas palavras entrando em meus ouvidos em letargia inconsciente, da mesma forma que o cheiro fresco do café inundava minhas narinas.

Augusto costumava dizer que fazia algumas coisas só para provar para si mesmo que era capaz, e que de um jeito de outro ele sempre conseguia fazer qualquer coisa, porque ele era assim, ele queria me fazer acreditar que eu também, que todo mundo era assim. Mas ninguém deveria ser capaz de dobrar a gravidade, controlar a energia ou reações atômicas e nucleares, eu não deveria ser capaz de voar ou de saltar no ar como eu fazia, mas eu era capaz, e talvez Augusto e Rosa tivessem razão, as coisas são como são, não há outra forma de encarar as coisas sem enfrentá-las como elas realmente são, mas negar nossa capacidade de transcender o impossível não é um bom jeito de começar.

Mas eu deveria encarar o retorno para casa? Seria justo comigo mesmo e com os outros voltar e de repente desaparecer? Já não vinha sendo difícil demais para todos lidar com minha ausência, seria mesmo necessário fazê-los lidar com a minha morte?

Antes de deixar Recife às pressas tudo o que eu queria era poder voltar para casa, tornar a dormir na minha cama, estar perto da minha família e dos meus amigos, mas então tudo mudara, tão rápido quanto deixamos Recife eu mudei de opinião e de repente eu não acreditava mais que voltar para casa pudesse ser uma boa ideia, mesmo que apenas por alguns dias, eu não sabia mais como lidar e retornar a uma falsa normalidade que eu sabia que nunca mais teria.

Talvez levar a cabo o plano de Rafael pusesse fim àquele dilema, talvez morrer para os olhos daqueles de quem eu amava fosse o melhor jeito de seguir vivendo sem ser descoberto ou sem aquele desejo estarrecedor de voltar, se todos acreditassem que eu morri pro mais dolorido que fosse a ideia seria mais fácil seguir em frente, sabendo que ninguém mais esperava eu voltar, sabendo que haveria sim a saudade, mas haveria o consolo no eterno que é a morte, no definitivo que é o desencarne, então finalmente a minha vida atual não teria mais nenhuma relação com a minha vida antiga.

Eu tentava entender por que Rafael queria que eu voltasse para casa, por que eu deveria morrer lá. Não queria acreditar que era por Geff, que por mais que ele tivesse nos traído, mentido para nós, ele tivesse de ser minha testemunha, ele tivesse de ser a pessoa que confirmaria a minha morte.

Mas encará-lo não tinha de ser tão dolorido assim, tornar a vê-lo poderia ser uma oportunidade de confrontá-lo e ouvi-lo uma última vez. Ele havia corrido feito um covarde na última vez, ele havia nos dado as costas com tamanha facilidade que eu ainda não conseguia assimilar tudo tão rápido quanto deveria. Eu não sabia se queria mesmo ouvir da boca dele as suas motivações, eu não sabia se queria mais daquilo, eu não sabia se podia lidar com mais. Me doía tanto, mas tanto, que eu não conseguia mensurar, porque nós havíamos nos beijado de um jeito tão singelo, nós havíamos nos amado, e pareceu real de mais para mim, pareceu sincero, pareceu amor de verdade. Geff havia sido o primeiro homem da minha vida, ele havia sido intenso no carinho, pareceu preocupado de verdade, soou genuíno em suas palavras, e me inundou quando fizemos amor, quando amamos aquém da gravidade. E talvez por as memórias da traição se misturarem com as memórias do amor eu não quisesse tornar a vê-lo, eu queria que dentro de mim só houvesse raiva, só houvesse mágoa e que não houvesse mais resquício algum daquela paixão.

VOLITARE | (Romance Fantasia Gay) | COMPLETOOnde histórias criam vida. Descubra agora