9 | A dívida

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Acabei encontrando com Júnior na parada de ônibus, cinco minutos depois de ter deixado a casa dos Sullivan. A lateral de seu corpo estava apoiada em um dos metais verticais que sustentavam o teto da parada, de costas para mim. Ele me viu quando atravessei a rua e, dando uma última tragada, jogou o cigarro para longe. Perto o bastante dele, notei que havia um traço de decepção em seu belo cenho — eu estava acostumado a decifrar essa feição porque ela aparecia com frequência nos rostos dos meus colegas de sala na escola quando meus professores me obrigavam a fazer algum trabalho em grupo com eles.

— E aí? — sorri para Júnior, pondo minha mochila no banco da parada. — Quanto tempo, né?

Consegui fazê-lo rir, ainda que o riso tivesse sido efetuado por um mísero segundo. Aparentemente, a cena de há poucos minutos com seus pais o trouxe de volta àquele sentimento de quem estava amargurado. Se era porque eu estava por perto quando isso aconteceu, eu não sabia dizer. Minha única certeza era que, depois que cheguei na parada, um silêncio reinou. Júnior e eu estávamos tão quietos quanto eu ficava nos debates que aconteciam nas minhas aulas de Filosofia na faculdade. Como todos eles sempre valiam nota, eu fingia participar murmurando um "concordo" ou um "exatamente" logo após um discente expor sua opinião, assim o pessoal da sala perceberia que não fiquei o tempo inteiro calado. "Discordo" era uma palavra que eu jamais usava durante essas aulas participativas, pois isso implicava que eu teria que esclarecer meu ponto de vista sobre aquele determinado tema que discordei.

Júnior respirou fundo, cruzou as pernas esticadas e infiltrou suas mãos nos bolsos do short jeans.

— Eu nem sempre fui assim, sabe? — ele esclareceu, o olhar intenso orientado para mim. — Meus pais e eu... éramos bem unidos. Mas eles me decepcionaram recentemente, então tudo mudou.

Observei atentamente o seu rosto. Ele parecia sincero e magoado ao mesmo tempo. Vai ver Júnior estivesse se sentindo forçado a me dar uma justificativa por ter saído ligeiramente da casa dos pais, mas não quisesse embarcar nos detalhes do que houve também.

— Relaxa — sorri de novo. — Acontece. Não precisa me dar explicação. Eu mal dava satisfação para minha família quando os vizinhos batiam à porta de casa dizendo "Mário, seu filho acabou de arrancar as folhas da minha Bíblia para fazer origamis" ou... "Solange, seu filho roubou o kit de maquiagem da minha filha e disse que nem plástica seria capaz de fazer o rosto dela ficar bonito". Essas coisas que qualquer adolescente normal faria, entende?

O olhar de Júnior ficou mais calmo.

— Isso explica muita coisa.

— Como assim?

— A sua personalidade, por exemplo. Ela é muito... — Ele pausou, e vi a sombra de um sorriso alegre por trás de seu franzir de lábios. — Extrovertida, digamos. Você não deve ficar triste com frequência, suponho.

— É... acho que sim. Tristeza não é lá um sentimento que tenho afinidade.

Júnior desencostou-se do metal e se sentou ao meu lado. Mais uma vez, não havia nada de cheiro de cigarro, e sim aquele toque mentolado da fumaça.

— Tudo bem, o lugar onde você está morando agora há vizinhos fofoqueiros como os que têm perto da minha casa? — eu perguntei.

Com aquele seu sorriso curvado e sigiloso, Júnior me fitou.

— Não. No lugar onde moro, não há ninguém. Só... árvores — respondeu, intensificando o lado misterioso que suas íris faziam questão de transmitir. — E, até onde sei, árvores não fofocam.

— Isso é verdade — concordei, esticando as pernas para frente. — Quer dizer, até você beber além da conta e começar a ver coisas que não existem. No meu aniversário de vinte e um anos, bebi tanto uísque que cheguei a acreditar que um cachorro vira-lata na rua estivesse apaixonado por mim.

COMO [NÃO] SER UM BABÁOnde histórias criam vida. Descubra agora