26 | O passado

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A mãe de Júnior me lembrava muito uma moça de um supermercado que conheci há uns oito anos — uma que me pegou comendo um pacote de cereal que eu abri escondido. Eu tinha mania de ir aos mercados e comer qualquer besteira do meu agrado (bolachas doces e salgadinhos de queijo estavam no topo da minha lista de preferência), mas só fazia isso quando não podia pagar por ela.

Justo, né, Ariel? Melhor do que roubar.

Costumava pensar que, se o livre arbítrio existia mesmo, por que eu não poderia usá-lo para usufruir das coisas boas da vida? Eu era apenas um adolescente muito esfomeado, ora, quem poderia me culpar por geralmente sair dos lugares com os bolsos bem mais cheios do que estavam quando entrei neles?

Sei que Deus não me julgaria.

A mãe de Júnior, Beatriz Souza de Andrade, quarenta e três anos, conversava comigo há uma hora desde que fomos apresentados um ao outro. O cabelo da mulher era completamente trançado, cujas pontas batiam até a cintura. Sua pele era alguns tons mais escuros que a do filho. A região abaixo das pálpebras possuía cores mais intensas que o a resto do corpo, e uma explicação da parte de Beatriz me informou que as marcas eram decorrentes ao mundo das drogas do qual ela fez parte por quase oito anos. Seus olhos eram pretos e, além de cansados, bondosos, remetendo-me às expressões que Júnior arquitetou quando conversamos sobre sua mãe anteontem.

Eu iria perguntar para ela se, em determinada parte de sua vida, ela teve que expulsar um garoto satânico de um supermercado (só para ter certeza de que já não nos conhecemos antes), mas, ao reprisar que ela era de outra cidade, mudei de ideia. Fiquei aliviado por não precisar efetuar a pergunta, assim Beatriz continuaria mantendo a impressão de que eu era o terceiro, talvez o quarto garoto de vinte e dois anos mais exemplar do mundo.

Não era como se eu quisesse passar uma imagem de uma pessoa boa para ela, até porque Júnior já deve ter lhe dito que as minhas características internas não eram tão humanas assim. Sequer fiz esforço para transparecer a Beatriz que eu era bom. Você me conhece, Ariel. Eu iria dizer duas qualidades razoáveis e, pronto, já teria terminado de oferecer todos os pontos positivos que eu poderia ter. Fazer as pessoas rirem é um atributo legal? Por que Beatriz riu muito comigo.

Falando sobre ela, percebi que seus dedos tinham um toque: eles se abriam e fechavam repetidas vezes acima da mesa, como se isso fosse fruto de algum nervosismo. Na verdade, não precisei de muito para constatar que a atitude estranha era também uma consequência de seu passado infeliz. O toque não era tão perceptível assim, mas algo sobre essa mania me informou que, há alguns anos, ela era maior, mais grave.

Era triste o que drogas poderiam fazer com o cérebro.

— Você tem uma áurea gostosa — ela percebeu. — É quase impossível querer sair de perto de você.

Júnior, que estava em pé, encostado na geladeira, as pernas cruzadas, sorriu. Ele concedeu as duas únicas cadeiras da cozinha do trailer para sua mãe e a mim. Que cavalheiro... No sexto ano, na minha escola, em uma brincadeira da dança da cadeira feita na quadra em novembro, fui levado à direção — nossa, que novidade! — porque joguei uma cadeira nas costas do garoto que sentou nela antes de mim na última rodada.

Digamos que eu não gostasse muito de perder nos jogos. Isso explicava por que eu sempre escondia um 3 comigo antes de cada partida de truco.

— Fico lisonjeado — eu agradeci, esfregando as mãos nas coxas. — Boa parte das irmãs da igreja que eu frequentava dizia o contrário. Elas falavam... que minha áurea tinha relação com algum ritual de macumba.

Beatriz sorriu. Percebi também que ela tinha uma maneira de se divertir além do que eu consideraria normal. Não era como se houvesse um esforço de sua parte para rir além do que deveria. Ela só... fazia isso com um entusiasmo mais elevado. Se eu não conhecesse sua história, certamente a definiria como uma pessoa maluquinha — num sentido próximo ao que os outros usufruíam com minha vó.

COMO [NÃO] SER UM BABÁOnde histórias criam vida. Descubra agora