19 | O convite

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[Terça-feira, 29 de dezembro de 2020]

Xuxa cantava na TV às 12h da tarde de terça-feira na casa dos Sullivan — obviamente não seria na minha. De tanto ouvir esse CD com Matheus e Brenda, comecei a ter pesadelos à noite. Okay, tudo esse exagero da minha parte não deveria ser tomado como algo verídico, uma vez que as músicas grudavam muito rapidamente na minha cabeça. Não era como se tivessem me forçado a cantar o hino nacional nas escolas, onde, de tão chato que ele soava para mim, eu só abria e fechava a boca mecanicamente, sem emitir nenhum som. Essa era minha maneira de fingir que estava cantando.

Eu te entenderia se achasse que esse ato era cruel, Ariel, mas a verdade era que eu não tinha conhecimento nem sobre vinte por cento do hino. Sem contar que, toda vez que chegava o verso "e diga o verde-louro desta flâmula", eu tinha uma crise de riso, pois tudo o que minha mente era capaz de pensar era numa cena em que eu conversava com o Louro José, do programa da Ana Maria Braga. Para não cair na gargalhada, eu teria que tapar os ouvidos nesse trecho.

Como eu era um abestado, meu Deus...

Liberta sobre tudo o coração, não despreze nunca a força da intuição... — a dona dos baixinhos cantava.

Brenda, Matheus e eu espelhávamos os mesmos passos que a Xuxa, em frente à TV gigante. Quando Matheus me perguntou se eu realmente sabia a coreografia, imitei a Inês Brasil e disse: "meu amor, eu sou professora de dança!".

Liberta o corpo pra poder sentir... os desejos, as vontades, o que ele pedir...

LIBERA! — cantamos em uníssono.

Canta mais alto, mostra sua voz... o que importa o que os outros vão pensar de nós?

Só hoje, pensando mais na letra do que na própria dança em si, notei o quanto a canção trazia uma mensagem de importância grande, possivelmente além do que as crianças fossem capazes de compreender. Era uma música feita para a plateia infantil, claro, porém com uma interpretação exigida por um público mais maduro, nada destinado a terraplanistas.

O que importa o que os outros vão pensar de nós? Achei incrível a ideia da pergunta e me senti triste por pensar que, ao contrário do que a letra transmitia, sempre dei relevância para o que as pessoas me diziam. Se eu as tivesse ignorado, poderia ter me poupado de inúmeros problemas na vida — como no dia em que fiquei de castigo por ter queimado a Bíblia da irmã da igreja que tinha dito que eu poderia ser curado da homossexualidade.

Ariel, caso você seja religioso, gostaria de frisar aqui que eu não tinha absolutamente nada contra alguma religião. Minha raiva se dava pela forma como as pessoas arquitetavam um deus que me condenaria ao inferno apenas por eu ser quem era. Se todas as religiões tivessem que seguir esse exemplo doentio, então, sinceramente, eu iria preferir ser ateu. Para mim, um homem gay teria muito mais chance de adentrar no reino dos céus do que um cristão cego que o julgou pela vida inteira.

— Tudo bem, estou exausto — rendi-me após o término da música e joguei meu corpo no sofá da sala, a respiração acelerada. — O que vocês fazem para ter tanta energia? Jesus amado!

— Já vai parar? — perguntou Matheus, rindo.

— O babá maravilhoso aqui está velho demais. — Se ter 22 anos era sinônimo de velhice, não queria nem saber em que categoria a minha vó se encaixava. — Não vejo a hora de o final de semana chegar e eu finalmente poder ficar longe da dança de vocês.

Embora fosse trabalhoso ser babá (porque eu não poderia passar mais de três horas sem ser chamado para fazer algo que minha idade não aconselharia a fazer), essa duplinha de crianças aqui me ensinou muitas coisas. Foi graças a Matheus que descobri que não era certo fazer pipoca no microondas, pois o pacote pegava fogo. Minha casa desconhecia esse eletrodoméstico, então era até compreensível que a residência amadeirada dos Sullivan quase tivesse pegado fogo ontem por causa da minha falta de noção. Já com a Brenda, aprendi a decifrar melhor os desenhos infantis, assim eu evitaria dizer que ela tentou desenhar um E.T. deformado quando, na realidade, ela queria representar seu pai.

COMO [NÃO] SER UM BABÁOnde histórias criam vida. Descubra agora