22 | A oferta

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[Terça-feira, 05 de janeiro de 2021]

— Você sempre quis ser babá? — Matheus me perguntou.

Era manhã de terça, e os meninos queriam comer omelete com cebola e queijo no café da manhã. Achei isso exigente demais, e foi só hoje que concluí o motivo dos Sullivan me pagar duas parcelas generosamente gordas: além de ter que me matar para cuidar das crianças, eu teria que satisfazer seus desejos na culinária. O medo de alguma delas morrer entalada com alguma comida que eu fiz era enorme, pois todo mundo, levando em consideração as desgraças que já causei com o público infantil na minha infância, não teria dúvidas em acreditar que fiz isso de propósito.

Ter realizado tanta ruindade na vida das pessoas tinha uma desvantagem estrondosa. Um exemplo grande disso era que, no ensino médio, os professores jamais confiavam em mim para absolutamente nada (nem mesmo para chamar um aluno de outra turma, pois sabiam que eu fugiria para a quadra no meio do caminho). Todos os docentes de todas as escolas que frequentei sempre falavam que o "protagonista de 'Invocação do Mal'" — palavras que eles usufruíam para se referir a mim — não era uma pessoa confiável.

O rabo deles que não era!

— Com certeza — ironizei, tendo consciência de que Brenda e Matheus não fossem capturar a minha ironia. — Dizem que as palavras iniciais das crianças são "mama" ou "papa". Comigo foi um pouco diferente. Quando eu estava aprendendo a falar, a primeira frase que saiu da minha boca foi "quelo sê babá".

Os dois pombinhos sentados lado a lado riram, fazendo-me sorrir. Mal sabiam eles que, na verdade, "lindo" foi a primeira palavra exposta pelos meus lábios (segundo a minha mãe, que me informou que, na hora, eu tinha acabado de me olhar no espelho). Se a informação era verídica, até hoje não sabia dizer.

— E vocês querem ser o quê? — perguntei, deixando em seus pratos a omelete. — Espero que tenham mudado de ideia em querer se tornar pessoas como eu, pois ser gostoso não é suficiente.

Brenda sorriu.

— Quero ser advogada — ela disse.

— E eu quero ser médico, igual o meu pai.

Olhei-os com bondade.

— Estudem bastante — murmurei o que nunca fiz. — Se fizerem isso, poderão ser o que quiser.

— Você queria ser outra coisa quando era criança? Sem ser babá?

Rico.

— Já — sorri, assentindo. — Eu queria ser cantor também, mas desisti da carreira depois de perceber que eu poderia facilmente invocar um holograma satânico com minha voz. Deixarei esse sonho para quem tem talento, para quem não parece uma garça engasgada cantando.

— Mas sua voz é linda — Matheus disse, discordando de mim.

De verdade, Ariel, já faz muito tempo que deixei de pagá-los para me elogiarem, então, por favor, não pense que eles estão fazendo apenas porque darei cinco reais a eles depois.

— Acha mesmo? — perguntei, apoiando as mãos na mesa.

— Sim — Brenda concordou, a boca cheia. — A minha mãe também achou. Ela disse que você é muito bonito!

Fiz beicinho. E a novidade, minha filha?

— Sério? — Interessado pelo súbito rumo da conversa, inclinei meu corpo para frente, praticamente deitando meu peitoral na mesa. — Hã... e o que mais ela disse sobre mim, além do óbvio?

Matheus e Brenda pensaram por um instante. O garoto me respondeu primeiro:

— Ela falou que você era gentil também.

COMO [NÃO] SER UM BABÁOnde histórias criam vida. Descubra agora