03. Brutal Encontro

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Paris, França.
        20 de maio de 1986

LOUISE VALERIE
 
Noite

    Não posso acreditar. Além da ironia de estudar enfermagem quando o único motivo pelo qual fui trancada nesse convento foi justamente não querer estudar isso, ainda tenho que me dar o trabalho de arrumar as malas pra servir a um bando de gente rasgada pela guerra. Vamos, me julgue! Ora, não sou obrigada a amar uma profissão que eu não escolhi. Superar o abandono dos meus pais, os tão estimados Valerie, não foi fácil. Mas eu tive tempo, já que vivo aqui há cinco anos. Aos quinze, disse a eles que queria seguir carreira de pintora. Ah... Expor meus quadros e esculturas era meu sonho, especialmente aqui em Paris, a Cidade Luz. Mas não, meu tão obcecado pai e minha tão religiosa mãe (amante da religião, não da fé em si) queimaram os poucos quadros que havia pintado e destruíram minhas esculturas. "Medicina!", diziam repetidamente. "Me-di-ci-na!". Aquilo ecoava na minha cabeça de tal forma que hoje, aos vinte anos, não posso mais ouvir essa palavra sem me arrepiar.
    Voltando aos rasgados pela guerra, não pense que não me comovem. Gente ferida merece empatia. Nem todos, mas estamos indo ajudar o lado certo da guerra, aparentemente. Sim, o código de conduta dos médicos não olha lado certo ou errado. Olha o lado ferido da história, geralmente os dois. E sim, eu não sou médica e não me importa escolher um lado para julgar certo ou errado. Pode não parecer, mas aos olhos das madres, sou uma pobre e inocente moça com os sonhos desmanchados. Sorrio simpaticamente para elas e para as outras noviças, como se não houvesse dor em mim. Aqui, na minha mente, posso destilar minha infelicidade e amargura.
    Por exemplo, hoje mais cedo, fui com a Madre Elizabeth ao centro para comprar mantimentos para a viagem. Não era serviço meu e muito menos dela, mas ela queria e me selecionou como companhia. O sorriso falsamente simpático surgiu, como se eu não quisesse dizer "não". As pessoas andando pelas avenidas, solenes, como se não pensassem cada uma em seus próprios problemas fúteis. Não eram fúteis de verdade, mas para alguém com problemas que julgasse maiores do que os demais, poderia ser. Como numa competição patética de "Meu dia foi tão ruim, nem te conto!" ou "Ah, mas meu dia foi muito pior...". A mesma competição poderia ser feita com frases positivas. Seria bem menos tosco.
    Eu não estou amarga assim à toa. Na verdade já tem uns meses, desde dezembro. Fim de ano me lembra de minhas inúmeras exposições imaginárias de adolescente. O natal me fervia e o ano novo me atiçava. É um sentimento bom para cada dia especial do ano. Agora, tudo que sobrou é uma amargura em intensidades diferentes. O grito silencioso de quem teve seus sonhos arrancados.

***

    Nós ainda vamos partir em uma semana, mas a ansiedade das demais noviças não as deixa quietas. Todas de mala pronta. Essa animação toda, esse entusiasmo... Me enoja. Literalmente. Mas ao mesmo tempo, me comove. Sim, pois saber que alguém próximo a mim não perdeu as esperanças na vida, me comove. Dá pena. É ingênuo. Mas ser ingênuo por instantes, ou nunca deixar de ser ingênuo, pode ser bom. Deixa a vida mais leve.
    Você imagina que um convento é calmo e melancólico até ver um bando de jovens noviças (algumas quase virgens) reunidas e empolgadas. Não têm pudor quando as freiras dão as costas. Algumas estão aqui por "comportamento obsceno", que poderia ser interpretado como "afronte à sociedade que não quer me deixar ser quem eu sou". Outras, porque têm "comportamento antibíblico", que poderia ser interpretado como "beijar outra mulher" (o que era normal, mas todos negavam). Famílias "conservadoras" do século XX: mulheres acomodadas com suas posições que fingem gostar, enquanto seus maridos estão em um puteiro qualquer usufruindo de uma das jovens meninas, mais jovens que suas esposas, e mais jovens do que deveriam ser. Quando volta pra casa cheirando a álcool e sexo, sua mulher o espera com uma grande refeição à mesa, com lágrimas secas nos olhos e mais uma vez, o sorriso forçado. Ah... Nada como a sociedade constituída com base na hipocrisia.
    Claro, há boas famílias também. Aquelas que cuidam uns dos outros, com maridos que amam e respeitam suas esposas, sem nenhum tipo de "hierarquia familiar". Esposas que amam de verdade seus maridos e filhos. Esposas que não olham secretamente com nojo para seus filhos por eles serem frutos de um abuso. Esposas com sorrisos sinceros e empregos. Esposas felizes.
    A senhora minha mãe, Mme. Luma Valerie, claro, se encaixava perfeitamente no primeiro tipo de esposa. Depois de esfaquear meu pai, M. Walter Valerie, o tão estimado colunista (e cachorrinho do governo) após ele chegar de mais uma de suas noitadas. Botou o homem na rédea, criando assim, o terceiro tipo de mulher do século XX: a que, cansada das humilhações, partira para a irracionalidade da agressão e manda no marido.
    Não sonho em ter uma família, mas se um dia tiver, espero ser o segundo tipo de esposa. Ou talvez, uma que não precise ser classificada com "tipos". Uma esposa, apenas.
    Sim, sou uma noviça que cogita, num convento, casar e me tornar A Esposa.
 

28 de maio de 1986
 

Manhã

    Imagine como estou feliz: gente animada em plena manhã de quarta-feira. Estamos prestes a subir em nosso primeiro ônibus (primeiro, pois pegaremos dois. Não sei por qual motivo, se poderíamos ir direto pra lá num voo qualquer). Poderia imaginar a grande despedida que meus pais me dariam, mas estaria mentindo pra mim mesma. Quando digo que eles me largaram lá, não é maneira de dizer.
Nosso destino nos foi revelado já dentro do ônibus: Romênia.
    Estranho, muito estranho. Não havia tido notícias de guerra alguma na Romênia. Ao perguntar à Madre sobre, ela apenas olhou fundo nos meus olhos e disse: "Há guerra e sofrimento em todo lugar, criança." Não engoli aquilo. Uma guerra que não servia para alimentar os abutres da imprensa? E por que, se fomos convocadas em dezembro, ir só agora? Mais alguém estranha isso? Não, óbvio que não. Algumas das demais noviças só estão preocupadas em conter o fogo embaixo de suas saias. Parabéns àquelas que realmente levam seus votos a sério. Sinceramente, as admiro. Não a ponto de mudar minha opinião, mas há sim admiração. De verdade, desejo tudo de bom pra elas.
 

Timisoara, Romênia.

Noite

    Chegamos. Não em Constanţa, como era o previsto, mas em Timisoara, já na Romênia. Vamos ter que dirigir direto para lá. Não vamos parar para descansar em momento algum. Se quisermos dormir, terá de ser em movimento. Ao todo, são vinte e seis horas de viagem no melhor trânsito. De onde estamos, chegaremos em nosso destino final em cerca de nove horas. Mal desembarcamos e o outro ônibus já nos aguarda. Confortável, limpo... Quase de luxo. Mais uma vez, muito estranho e só eu notara aquela estranheza: o governo romeno pagou aquilo tudo? Com certeza, porque a igreja não deve ter sido.
    Dirigimos bastante. Previsão de mais algumas poucas horas até o destino final. Há burburinhos, gritos histéricos e risadas pelo ônibus partindo de algumas meninas, enquanto outras mantém-se fixas na leitura da Bíblia. Ah... A animação jovem e a reprovação velha: as demais noviças pulando, cantando e tagarelando ao meu redor, enquanto a Madre tentava as apagar, inutilmente. Vou para os lugares mais a frente, umas três fileiras atrás de Elizabeth, que olha suavemente para mim e se acomoda de volta em seu sono. Abro as duas janelas sobre mim, coloco o cinto, pego meu travesseiro e durmo. Ou fecho os olhos, até conseguir uma breve cochilada. O vento gelado passando pelos meus cabelos me conforta.
 

Tâmasus, Romênia.
29 de maio de 1986 

Manhã

    Dormi demais e não sei mais onde estou. Já está de dia e ainda não chegamos. Mas para onde é que estamos indo? Todas as meninas parecem estar mais calmas, dormindo. Sou a única acordada. Vou até o fundo do ônibus e me sirvo de alguns bolinhos para enganar o estômago. Não paramos para fazer uma refeição direito. Está agradável, olho pela janela a paisagem. Do lado esquerdo, uma floresta densa, estranha. Acima das árvores posso ver, distante, uma torre que parece ser de um castelo. Do direito, onde estou, um profundo cânion que tem como fim um pequeno lago.
    De repente, ouço um som grave de buzina se lançando no lado oposto ao meu do ônibus. Parece vinda de dentro do barranco. Me viro ligeiramente para trás e posso ver, de repente, um carro grande atravessando ao meio o ônibus pela lateral. De repente, vejo as meninas da metade de trás, caindo todas, aos gritos, no abismo, onde o fim é a água do tal lago. De repente, vejo tudo rodando, minha metade como um pião, e de repente a vejo pendendo na beira daquela parede eterna, sobre uma rocha. Quase uma gangorra da morte. Madre Elizabeth está aos berros três poltronas na minha frente. Ela tira seu cinto. Eu também. Então, quando se levanta, atônita, para ir até mim, sinto que tudo ia desmoronar sob meus pés. Sinto o lado da cabine do motorista pender para dentro da grande garganta. "Salve-se!", grita Madre Elizabeth, percebendo o futuro destino daquela situação.
    Como num passe de mágica, corro, quase me arrastando, para fora de minha metade. De repente, a vejo cair, sob os raios de sol. De repente. Um silêncio ensurdecedor por três segundos. Boom! Vejo tudo ficar com tons avermelhados, alaranjados, amarelados. De repente, eu, ainda paralisada de medo, sou derrubada pela forte explosão. De repente caio, de repente desmaio; um mix de dor física e emocional com alívio por estar viva. A única viva daquele ônibus.
    Tudo foi assim, de repente.

Artrópota: Árvore-MármoreOnde histórias criam vida. Descubra agora