21. Boas Vindas!

9 3 0
                                    


DIONÍSIO DI SAULO

Misiuni, Academia Artrópode Artêmesis, Artrópota.

13 de dezembro de 2018. 

Tarde
— Saúde e glória a todos! Meu nome é Dionísio Di Saulo...

  Ouço baterem repetidamente na porta e a voz de vovó surge:

— Dionísio, por que está trancado nesse banheiro? Vamos, rápido! Eles já estão pousando!

— Estava ensaiando as apresentações — digo, saindo do cômodo. — Mas acho que é o que menos importa pra eles agora.

— Não precisa ensaiar isso. Na verdade, nem é algo bom. Vai parecer programado, e não queremos isso — ela dá uma pausa e caminhamos um pouco mais pelo corredor. — Vamos repassar as instruções: foram montadas tendas temporárias no pátio de desembarque...

— Os setores continentais — completo. — Cada Resgatado que chegar deve se direcionar para seu respectivo setor, onde serão feitos seu registro e classificação.

— Exato. No mais, é isso. Você ficará responsável pelo setor da Europa. Estarei no americano, caso necessite de ajuda. Alonzo, Úrsula e a Sra. Tagmus também estarão lá.

  Kássia Di Saulo, minha avó, parece ter sido moldada delicadamente pelo tempo. Não digo pela aparência física (que praticamente não mudou desde os anos 80, mudando apenas o penteado, assumindo um glorioso moicano com laterais prateadas pelo timpre), mas pela personalidade. Teve que lidar com muitas mudanças de uma só vez: a morte de seus velhos amigos, as responsabilidades de vovô Saulo (que o obrigaram a permanecer em Tâmasus), a mudança para Artrópota, a chegada de dois netos de uma só vez e as responsabilidades como Tropo, além, é claro, de todo o apoio psicológico dado aos tamasianos. Se tornou, além de professora da história tamasiana, a diretora do Centro de Psicologia e Psiquiatria Artro-Tamasiano, que com sua equipe de competentes profissionais, fornece tratamento psicológico gratuito a tamasianos e artropotanos que passaram pelos traumas dos ataques. Uma mulher respeitada e admirada por toda a sociedade artro-tamasiana.

  Me desanima o fato de a Sra. Tagmus estar lá também. Espero que em um setor distante do meu. Para ela, eu sou o responsável do divórcio dela com meu pai, mas sei que não é bem assim. Tuski sempre me explicou que a relação deles se desgastara desde quando ela contou que estava grávida. A partir daí os dois mudaram muito um com o outro. Quando os gêmeos nasceram, ela veio imediatamente para Artrópota e, então, ela é Tuski se casaram. Ele conta que era como se vivesse com uma desconhecida. Desde então, ela abandonou o costume de ser chamada de “Eleonor” para algo mais formal: Senhora Tagmus. Fica ainda mais formal quando usamos sua ocupação: Senhora Tropo Secretária Administrativa Tagmus. Longo e desnecessário, mas enfim... Hoje em dia, além de ajudar na administração de Artêmesis, também administra e diretora um orfanato em Ciarta, que leva seu nome.

  O pátio de desembarque fica na porção dianteira de Artêmesis, como um estacionamento de shopping. Aqui, através de rampas, os veículos descem até o Montare, onde são inspecionados e calibrados. É um longo espaço inspirado no jardim frontal do Castelo Prime T.

  As tendas estão dispostas em lados opostos. Três à direita (África, América e Ásia) e duas à esquerda (Europa e Oceania). Fiquei com o setor que mais se espera receber Resgatados, o que me encoraja. O nervosismo é inevitável, mas é o que venho pedindo há tempos: reconhecimento e utilidade. Não posso decepcionar.

※※※
 
M

ais de uma centena de pessoas já chegou. As missões de resgate ainda não foram encerradas, então podem vir a chegar ainda mais. Há famílias completas e alguns jovens avulsos, uns desesperados e outros conformados. Não há como reprimir os sentimentos, por mais que todos já soubessem que havia a possibilidade de seus entes ou mesmo eles morrerem. É como se Artrópota dissesse: “Olha, demos a oportunidade de ficarem seguros e vocês foram embora. Não vamos desamparar vocês, mas saibam que podem morrer a qualquer momento.”.

  As tendas são como salões de festa, colocando numa forma infame de dizer: há longas mesas com bancos compridos dispostas por todo o espaço, além de ter sido colocado tudo branco. Bancos, paredes, teto, mesas, tudo em tons de branco, com exceção do chão, que é o mesmo do resto do pátio. Há comidas leves sobre essas mesas também, como frutas e biscoitos. No fundo de cada tenda há um guichê eletrônico, onde será feito o registro biométrico.

  O clima é tenso e incômodo. As pessoas murmuram e quase não há interação, com exceção das pessoas de mesma família. Se essa é a tenda com mais pessoas, imagino como devem estar as outras...

— Meu nome é Dionísio Di Saulo e vou guiá-los nessa primeira etapa de registro — anuncio com um microfone. — Quero lhes dizer que Artrópota lamenta profundamente as perdas que alguns de vocês tiveram. Fizemos o possível para evitar, mas...

  Hesito. Essas frases prontas não são o que realmente quero dizer e nem o que eles querem ouvir.

— Pessoalmente, conto com a ajuda e a vontade de vocês em se tornarem Artrópodes. Vamos diminuir a vantagem que os Escorpiões têm: a invisibilidade. Ninguém sabe onde estão, mas todos sabem por onde passaram. Eles deixam rastros de sangue, mas acabou! Hoje começa o declínio daqueles que nos traíram!

  Palmas inseguras sucedem minhas palavras. Me exaltei, pelo visto, mas foi algo humano, algo que os motivou. Não sei se funcionou, mas foi a intenção.

  Estou prestes a dar as instruções de cadastro quando sou interrompido por uma voz berrando lá fora, no pátio, que cortou o silêncio parcial que habitava não só aqui, mas em todas as tendas. Todos se direcionam para a entrada — inclusive eu — para ver de quem partia os gritos. Conforme saio, percebo que não são só berros, são xingamentos. O pessoal das outras tendas também sai e posso ter uma noção de quantas pessoas há aqui: cerca de quatrocentas.

— Tire a porra das mãos de mim, seu inútil! — berra o rapaz ao desembarcar da vespa que o trouxe. Percebo então que ele gritava antes mesmo de descer.

— Senhor, por favor, se acalme... — tenta o Piloto Batedor.

— Pro inferno com a tua calma! Eu fui largado pra trás de propósito por aquele filho da... Espere! Ele já deve estar aqui!

— Por favor, Senhor Dalca, se direcione para seu setor continental e...

  A nave e os dois estão bem no meio do espaço entre as tendas da direita e da esquerda. É como de fosse um coliseu, e o espetáculo é o tal Senhor Dalca.

— Aquele merdinha tem que pagar! Ele tentou me matar! Tentou fazer aquele homem me matar no lugar dele!

  Olhando além do rapaz, percebo um garoto se esgueirando atrás da “plateia”, como quem quer se esconder. Não entendo bem o que é aquilo, mas não fui o único a notar: um terceiro rapaz, este do meu setor, vê e atravessa para o outro lado. Eles se conhecem?

  O centro das atenções de repente vira para trás e vê o garoto se escondendo. Rapidamente o reconhece:

— Maximus?! Então você está aí, se escondendo feito um rato! — ele dispara em direção ao garoto — Quando eu acabar com o que quero fazer na sua cara, nem a sua mãe vai te reconhecer!

  Rapidamente o mesmo rapaz do meu setor intervém entre o agressor e o quase agredido. Ele é alto, mais alto que Dalca, e visivelmente mais forte, embora os dois tenham porte atlético, mas seu ato foi em vão, já que o Batedor que o trouxe aplicou um procedimento de imobilização. Ainda assim, Dalca, referindo-se ao outro rapaz, diz:

— Ah! Então quer dizer que você mal chegou e há arranjou um guarda-costas?!

— Tenho certeza que ele tem uma boa explicação pro que quer que tenha acontecido entre vocês...

— Você nem se quer o conhece! Não presta! Nem ele e nem o pai! Dois bostas!

— Basta! — intervém Alonzo. — Vá já para o seu setor continental e aguarde suas instruções, senhor Dalca! E você também! — referindo-se ao segundo garoto. — Todos vocês!

  As pessoas começam a voltar para as tendas e percebo uma garota levando o garoto ameaçado de volta para sua tenda — a da América —, mas o primeiro rapaz ainda diz:

— Nós viemos do mesmo lugar! Haha! Não vai conseguir me manter longe dele por muito tempo.

Artrópota: Árvore-MármoreOnde histórias criam vida. Descubra agora