1981

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Quando José Ángel acordou ele se sentiu completamente diferente. Leve. Mais forte. Queria dizer ao Xamã que o chá e o cochilo tinham funcionado, porém ao abrir os olhos se deparou com algo inacreditável.
Ele estava em um pequeno quarto, deitado em uma cama de solteiro na qual mal cabia.
Arriaga sentou na cama tão rápido que sentiu uma vertigem tremenda e se agarrou na beira do colchão para não cair.
O pior de tudo é que ele conhecia aquela cama, aquele colchão e aquele quarto. Era a casa da sua mãe em Catemaco, Vera Cruz.
Isso não seria problema algum se aquela casa não tivesse sido vendida há mais de 20 anos quando ele casou com Cristina e o dinheiro fora usado para comprar seu rancho, que aliás, já nem existia mais.
Quando a vertigem passou, Arriaga percorreu os olhos pelo quarto. Estava exatamente como ele lembrava. Decorado de maneira simples, com suas medalhas de Aikido, algumas plantas, o mesmo guarda-roupas, a mesa de estudo e uma prateleira com os livros da Universidade de Agronomia que ele ainda não tinha guardado depois da morte do pai.
Arriaga levantou-se com cuidado olhando ao redor de si. Estava sonhando? Era parte de algum feitiço criado pelo Xamã? Ou estava acontecendo apenas dentro de sua mente?
Enquanto ele andava pelo quarto, sem querer passou em frente ao espelho que ficava fixo a porta do guarda-roupa. Quando se viu no espelho quase teve um ataque cardíaco. Ele estava... jovem? Mas jovem quanto? Arriaga passou as mãos pelos cabelos, rosto, braços... sem acreditar. Começou a rir, olhando para si mesmo. Se só pudesse ter esse sonho até esse momento, já teria valido a pena.
Mas se estava mais jovem, seus pais estão poderiam estar vivos? Isso lhe encheu de esperança e ele saiu do quarto gritando por seus pais. Quando chegou na sala, no entanto, tudo era bem diferente. A sala de estar era um amontoado de caixas. No quarto dos pais, a mesma coisa.
Arriaga olhou ao redor sem entender. Ele se aproximou de um amontoado de correspondências, procurando pela data até finalmente encontrar: 1981. Nesse ano, sua mãe havia falecido. Provavelmente tinha acabado de acontecer. E nesse mesmo ano ele fechou a casa em Vera Cruz e fora morar em Santa Rita, depois de uma oferta de trabalho no campo. Tudo fazia sentido. Arriaga observou uma das poucas coisas que não estavam empacotadas naquele cômodo: a virgenzinha de Guadalupe. Uma lágrima correu pelo rosto dele. Já fazia tanto tempo aquela perda, e mesmo assim, tão recente era aquela dor para esse corpo jovem.

"Descanse tua cabeça e tua alma para que teu coração possa falar" a voz do Xamã ecoou pela sala.

Ele estava tentando entender o que seu coração queria dizer o levando até aquela casa quando sentiu seu corpo inteiro estremecer. Sua visão escureceu completamente e quando pode enxergar outra vez, percebeu que estava na estação rodoviária de Catemaco, com uma mochila nas costas, segurando uma passagem de ônibus.
Arriaga observou mais de perto a passagem para ler o destino: Santa Rita, Amatlán, Morelos. Então era isso. Se havia algum motivo para ele estar nesse transe xamânico, era para reencontrar Cristina e resolver seu casamento e não para passar encerrado em uma casa sozinho, deitado em sua cama de solteiro na qual nem cabia mais.
Enquanto esperava para embarcar, Arriaga pode jurar que ouvira a voz de Victoria o chamando ao longe. Ele se esticou para ver se ela vinha correndo na direção dele para dizer que ele não fosse, que não o deixasse. O coração dele ficou apertado ao lembrar desse momento, do abraço que quase a fez sumir, do beijo que o transformou numa pessoa diferente, a partir daquele momento. E porque, porque ele estava lembrando da senhora Victoria quando estava indo para Santa Rita pensando em salvar seu casamento? Porque isso outra vez? Exatamente do mesmo jeito, outra vez?

"Cale sua mente e escuta o que o seu coração te grita" disse a voz do Xamã.

E isso bastou para José Ángel ser arremessado sem cerimônias para as ruas de Santa Rita.
Arriaga deu graças a Deus por seu corpo ter 21 anos e não 52, mesmo em uma viagem astral no tempo - fosse o que fosse – pois se sentir jovem era algo que fazia diferença. E ele estava se sentindo bem, naquele início de manhã em Santa Rita.
A cidade não estava muito diferente do que ele lembrava, mesmo com as lojas ainda fechadas. Arriaga aproveitou para andar pela cidade enquanto ainda não havia movimento. O sol da manhã não era tão forte e o cheiro de dia nascendo o deixou feliz. Era o conforto de algo conhecido, algo familiar num momento em que ele não tinha nada.

"Adriana!" uma voz feminina gritou ao longe.

Uma menina de 8 anos de idade virou uma esquina correndo e trombou fortemente contra as pernas de Arriaga, caindo sentada no meio da rua.

"Híjole! Você está bem?" ele perguntou, ajudando a menina a levantar.

"Sim, senhor, desculpa!" disse a menina, e Arriaga percebeu que lhe faltava um dente de leite "Me ajuda e me esconder?" ela disse, indo rapidamente se ocultar atrás das pernas dele.

"Adriana!" gritou a voz novamente, agora mais próxima.

"Mas porque? De quem?"

"Da minha irmãzinha."

"Ah, você está aí!" disse a voz que minutos antes gritava.

Quando Arriaga se virou para ver quem se aproxima sentiu que o chão lhe faltava. Victoria, bem mais jovem, vinha caminhando na direção dele.

"Adriana, vem aqui!"

"Não!" disse a menina, detrás das pernas de Arriaga, aos risos.

"Adrianinha, por favor, não incomode o senhor." disse Victoria e sorriu para Arriaga.

Arriaga pensou seriamente quais seriam suas chances de sobreviver. Que idade ela teria? Não deveria ter mais do que dezoito anos. E já era uma visão.

"Me desculpe, senhor..." ela começou.
"A-Arriaga..." ele disse.
"Arriaga" ela repetiu, e ele de novo achou que fosse morrer ao ouvir ela repetir seu nome como tantas vezes o tinha feito.
"Adriana, vem já! O que você tem?!"
"Não quero! Quero buscar a minha fantasia!"
"Maninha, eu já expliquei que a loja só abre em meia hora. Enquanto isso, vamos tomar café da manhã, que tal?"

Adriana olhava para Victoria pensando na proposta.

"Senhor Arriaga, me desculpe por isso, é que minha irmã está numa idade..."
"Não se preocupe, senhorita. Não tem problema."
"Adriana, vamos, por favor."
"O senhor Arriaga pode vir conosco?"
"QUE?!"
"Pra tomar café da manhã, mana. Por favor? Por favor?"

"Mas se nem sabemos se ele já comeu. Por favor, Adriana, não me faz isso." Victoria disse, envergonhada.
"Senhor Arriaga, você quer ir, né? Por favor? Por favor?" Adriana começou a pular ao redor de Arriaga, com toda a energia de uma criança.
"Se não tiver problema, estou com fome. Acabei de chegar de viagem."
"Viu só, maninha? Temos que ser hospitaleiras."

Victoria revirou os olhos e sorriu.

"Bom, vamos, então?" Victoria pegou Adriana pela mão e olhou para Arriaga de soslaio. Sorriu levemente. Arriaga sorriu de volta e Victoria sentiu seu coração perder uma batida. 

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