As festas em Catemaco podiam durar dias ou até semanas, dependendo de qual entidade estivesse sendo homenageada. Eram horas de cânticos, oferendas, toques de tambor, temazcais e toda a sorte de rituais que encantavam José Ángel desde criança.
Quando seus pais ainda viviam, participar dessas festas era algo comum e corrente na vida dele. Mas desde que saíra de Vera Cruz há mais de 25 anos, todo esse passado místico que formou a personalidade de José Ángel Arriaga, tinha ficado para trás. Não fossem pelos pressentimentos de Liliana e das leituras de Opalina, José Ángel jamais teria outro contato com o espiritual que tanto lhe ensinara sua mãe.
Era nisso que ele estava pensando enquanto observava uma fogueira iluminar a noite escura no meio dos bosques de Catemaco. Na vergonha que ele sentia em ter se afastado de suas origens, renegado por tanto tempo as raízes de seus pais, em detrimento do que? Ele mal sabia do que. Agora estava perdido, consumido pela culpa, envolvido em um casamento que ele já não sabia mais se queria manter por amor ou por compromisso.
Os tambores da tribo continuavam ecoando, dando seguimento ao ritual de cura. Ele estava na fila há algumas horas, mas não sabia em qual momento da noite ou do dia seguinte seria atendido pelo chefe Xamã. Opalina estava nesse ritual, do outro lado da fogueira. O observava de longe.
José Ángel estava aliviado por ter tirado esses dias para pensar. Para voltar a Vera Cruz, a sua origem. Ele era um homem do campo e a terra onde uma pessoa nasce exerce um poder forte sobre o indivíduo. Além disso, podia estar sozinho. Finalmente sozinho, depois de tanto tempo. E pensar.
Ele amava Cristina? Claro que sim. Ela era uma pessoa boa, mãe de sua filha. Tinha bons sentimentos, era honesta, engraçada. Sobravam qualidades. Tinham passado muitas coisas juntos. Mas se ele fosse honesto consigo mesmo, e ele podia – finalmente – ser honesto consigo mesmo, não estava mais apaixonado por Cristina. E isso não era culpa dela, nem de ninguém. Ele nem saberia dizer quando isso aconteceu, quando passou, e nem poderia dizer se tinha sido por causa da senhora Victoria.
Um grito alto do Xamã ecoou pela floresta assustando Arriaga, o tirando de seus pensamentos. Um bruxo passou carregando uma panela onde fumegava uma mistura de ervas que perfumava os arredores. José Ángel respirou fundo, sentindo o cheiro de eucalipto, jasmim e outras flores e plantas que foi tentando identificar e em segundos sua mente foi transportada para o jardim de inverno da mansão Balvanera. E ele podia ver a senhora Victoria sentada de costas para ele, escrevendo, e os cabelos dela cheiravam a camomila e jasmim e tudo o que ele queria era segura-la nos braços, bem junto de si e nunca mais solta-la.
José Ángel abriu os olhos mais uma vez, suspirando. Porque todos os pensamentos dele acabavam da mesma maneira? Porque não conseguia evitar pensar em Victoria Balvanera? Como fora se apaixonar assim? O pior de tudo é que José Ángel sabia que algo estava muito errado. Essa não era uma paixão passageira. Ele lembrava como tinha se sentido quando se apaixonou por Cristina. Com Victoria era diferente. Era outra coisa. E isso era o que o estava matando. Porque ele sabia que o que tinha com Cristina estava fadado a acabar, não havia volta atrás. E ele não queria faze-la sofrer, muito menos Liliana.
"Meu Deus, por favor, me ajude" ele disse, num sussurro.
Arriaga sentiu que alguém o tocava no braço. Quando levantou a cabeça, um homem usando uma máscara ritualística fez um sinal para que ele o seguisse. Os dois caminharam em meio as pessoas até chegarem a um temazcal. O homem afastou um cobertor que cobria a porta, indicando para que ele entrasse.
Arriaga sentiu muito calor, o que era perfeitamente natural dentro de um temazcal. Uma pequena fogueira dentro de um buraco no centro iluminava e aquecia o interior da oca. No fundo, um Xamã sentado no chão fez sinal para que José Ángel sentasse ao lado dele.
Por alguns instantes nenhum dos dois disse nada.
"Duas mulheres, filho" disse finalmente o Xamã.
José Ángel baixou a cabeça, sem saber o que dizer.
"Sabe qual amas, filho?" perguntou o Xamã.
"Ai, senhor..."
Arriaga cobriu o rosto com as mãos e começou a chorar.
"O coração é traiçoeiro, eu sei..."
O Xamã pegou algumas ervas e começou a macerar em um pequeno pote enquanto entoava alguns cânticos. O som da música e ritmo da maceração das ervas foram acalmando José Ángel. Em minutos ele parecia quase em transe.
"O que você precisa, filhinho, é descanso para tua alma. Assim pode ouvir o que em verdade teu coração grita."
O Xamã entregou o pote com as ervas para Arriaga. Ele pegou o pote quase sem perceber.
"Toma, meu filho. Um chá, para descansar."
Arriaga começou a beber o chá.
"Agora, meu filho, tu dorme. Descansa a cabeça e a alma para que teu coração possa falar." disse o Xamã "Não te preocupe que teu pai e tua mãe estão aí, consegue ver?"
Arriaga já deitado sobre um cobertor ao lado da fogueira conseguiu ver seu pai e sua mãe na entrada da oca, olhando para ele, sorridentes. Ele pensou que tudo aquilo era uma loucura, mas seu corpo estava demasiado pesado para pensamentos muito profundos sobre o que era real ou não.
O Xamã começou novamente a entoar cânticos e talvez por isso, pelo calor ou pelo efeito das ervas, talvez até pelo sorriso no rosto da sua mãe foi que ele finalmente fechou os olhos e dormiu como há muito tempo não dormia.
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Laberintos Cerrados
Fiksi PenggemarFilho de um antropólogo e de uma índia nativa de Catemaco, Vera Cruz, José Ángel Arriaga sempre esteve familiarizado com os rituais xamânicos de sua terra natal. Em meio à sua culpa e remorso, ele decide voltar para sua cidade em busca de uma respo...