XXVIII. Não acorde a fera

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Nota mental: nunca seguir uma trilha de gosma atrás da voz da sua melhor amiga numa situação suspeita numa ilha do mal. Perdoe-me se estou sendo específica demais, mas é que foi exatamente o que eu fiz. E agora me encontrava em uma situação um pouco complicada.

Eu gostava de contos de fadas, mas não exatamente das princesas, pois a achava muito óbvias. Eu e Elena tínhamos um gosto meio mórbido pelas histórias. Tipo Chapeuzinho Vermelho, em que um lobo come a avozinha e pega sua identidade; João e o Pé de Feijão, em que gigantes gananciosos querem comer um menino ingênuo atrás dos ovos de ouro; mas nossa favorita era João e Maria: os pais abandonam os filhos na floresta, os passarinhos comem a trilha de migalhas que os levariam pra casa, eles comem uma casa feita de doces, uma bruxa tenta fazer sopa deles, as crianças a enganam e a queimam no próprio forno. Como isso podia ser uma história infantil?

Eu nunca mais veria esse conto com os mesmos olhos depois que desse um jeito de sair daquela gaiola.

Minha tia tinha feito um bom trabalho em me dissuadir de coisas fantásticas, então eu não tinha exatamente medo de criaturas que claramente não existiam. Quando conhecera os feiticeiros, não os associara a bruxas; eles eram tão modernos e... normais, de certa forma.

Essa senhora cortando legumes não tinha nada a ver com eles. Ela era baixa, velha e gorducha, usava verde-musgo (para se camuflar), tinha o típico narigão com a verruga peluda, olhos todo pretos e unhas longas, afiadas e amareladas que escorriam o muco em que eu pisara.

Observei-a picar cogumelos e enfiar no caldeirão. Estremeci quando ela riu, de costas pra mim. Era uma risada alta e engasgada, como alguém que fumou a vida toda. Ela se virou para mim e limpou as mãos no avental encardido repleto de manchas de sangue seco e não tão seco assim.

A bruxa foi até um outro cômodo da cabana; uma luz alaranjada chegou até mim. Fogo. Segurei as barras e as sacudi. Minhas mãos ficaram sujas de ferrugem, mas o ferro não cedeu um milímetro sequer.

Minhas pernas já estavam doendo. Eu só tinha espaço o suficiente para ficar apoiada nelas ou sentada. E eu me recusava a sentar naquela cela suja de cheiro podre cavada no chão como um bueiro.

Ela voltou e parou na minha frente, se inclinando para olhar para baixo. Prendi a respiração enquanto ela pescava a chave do bolso para abrir o cadeado que me impedia de afastar as grades. Gritei ao ver seu sorriso. Seus dentes eram finos e afiados.

Ouvi a tranca se retraindo. Era minha chance de fugir. Assim que a porta se abriu, me icei para fora e comecei a correr. Meu corpo fez um baque ao cair para trás. A bruxa puxara meus cabelos com tamanha força que me lançara ao chão. Gritei de novo, de dor dessa vez.

— Não! Não! Não! — Berrei e me esperneei ao ser levada carregada para o outro cômodo, quente como uma fornalha.

Esgoelei ainda mais quando vi o amontoado de pedras cercando carvão e lenha que queimava e crepitava. Ela ia me assar como em um espetinho. Chutei como uma louca, com toda a força que me restava, mas o aperto só se intensificou, a gosma verde machucava. Continuei lutando, agora com lágrimas escorrendo livremente por minhas bochechas.

Ela me pôs no chão apenas tempo o bastante para prender meus braços com uma corda grossa num nó apertado que machucou meus pulsos. Tentei ficar de pé, guinchando de desespero. A bruxa usou um pano encardido para me calar, colocando dentro da minha boca. Senti ânsia de vômito na mesma hora.

— Assim está melhor — disse apontando o dedo monstruoso em riste para o meu rosto choroso. Depois rasgou a pele dali com a unha e provou o sangue que brotou ali. — Deliciosa. Mmmmmm.

A velha posicionou uma vara de madeira nas minhas costas e me ateu a ela. Era forte para uma idosa. Sem muito esforço, me levantou e me posicionou sobre a fogueira. O calor era intenso, machucava; se espalhou sobre meu corpo conforme ela me girava. A ponta do meu cabelo solto ficou chamuscada, meus olhos lacrimejavam. Minha mordaça caiu e pegou fogo, mas gritar agora só me faria inalar mais fumaça. Minha garganta queimava.

Os Últimos Descendentes - SangueOnde histórias criam vida. Descubra agora