"E de repente a vida te vira do avesso..."
Dezembro chegou e trouxe com ele uma frente fria que surpreendeu a todos. São Francisco, assim como o Kansas, não fazia tanto frio no inverno como os outros lugares dos Estados Unidos, mas já era o suficiente para fazer com que todos saíssem agasalhados de suas casas. O litoral fazia com que a frente fria fosse ainda mais agressiva, pois os ventos gelados vinham com maior intensidade devido à maré. As aulas fluíam intensamente e era nítido que todos ali não viam a hora das pequenas férias de Natal chegarem. Naquela manhã do dia dois de dezembro, quando sai de minha cama, jamais poderia imaginar o que me aguardaria ao final do dia.
Cheguei em casa, após uma tarde no trabalho e encontrei tia Steph apreensiva ao lado de Ralf. Ambos sentados de frente para o balcão da cozinha como se me esperassem chegar. Antes mesmo de tirar meu casaco, os encarei sentindo um frio descer pela minha espinha. A noite em que Martin e Kelly chegaram em minha casa no Kansas para dar a notícia do acidente veio claramente em minha memória. Tia Steph e Ralf tinham o mesmo olhar estampado em seus rostos:
― Está tudo bem? – perguntei com a voz fraca.
― O pai de Ethan está entrando no centro cirúrgico agora. – tia Steph respondeu sem rodeios. Essa era uma de suas maiores qualidades: falar na lata, sem titubear.
― O quê? Como assim? – perguntei deixando que minha mochila caísse no chão da cozinha.
― Ligaram do hospital agora a pouco. Esse era o único telefone fixo que eles tinham. Disseram-me que Abby Stuart havia pagado a conta do hospital. Acredito que tenham nosso número por esse motivo. – ela concluiu.
― Eu preciso ir para lá agora! – eu bradei recolocando meu casaco que ainda não havia saído de meus ombros – Ethan precisa de mim.
― Querida – tia Steph veio até mim tocando delicadamente meus braços – Ethan também está no centro cirúrgico.
Nesse instante meu corpo cedeu e se não fosse por minha tia ali, eu certamente teria caído. Eram muitas informações por segundo e meu cérebro não estava conseguindo processá-las. Tia Steph me guiou até uma cadeira e Ralf logo apareceu com um copo de água.
― O Sr. Walker precisou urgentemente de um transplante de fígado. Ele receberia alta, mas nos exames finais algo foi detectado e só um transplante o salvaria. Para isso, era necessário um doador com o mesmo tipo sanguíneo e com um fígado saudável. É aí que Ethan Walker entra. – Ralf explicou calmamente. Sua voz grossa estava paciente e de certo modo me acalmava.
Tentei manter a calma tomando um pouco daquela água, mas o chão ainda parecia ceder e o abraço de tia Steph era o que me mantinha firme.
― Eles ficaram de ligar quando a cirurgia acabasse. Nós iremos para lá assim que tudo estiver bem, querida. Por hora, acho melhor você comer algo e descansar. – tia Steph ainda me firmava em seus braços.
― Não estou com fome. – respondi me levantando – Me mantenham informada, por favor! – eu pedi antes de começar a subir as escadas.
●●●
Foi apenas um dia. Um dia sem ligar para Ethan para saber de notícias. E esse um dia foi o suficiente para tanta coisa acontecer. Era como se tudo tivesse saído do meu controle e eu detestava aquela sensação. Deitei-me em minha cama, ainda com a roupa que havia ido para a escola, e adormeci. Não me lembro de ter sonhado, mas sentia meu cérebro pulsar sempre que Ethan aparecia em minha memória – tudo poderia acontecer. Até mesmo o pior.
●●●
Acordei sentindo minha cabeça pesar e meu corpo parecia ter sido atropelado por um daqueles bondes enormes que circulavam pelas ladeiras da cidade. Pensei ter vivido um sonho, mas repentinamente lembrei-me de tudo o que estava acontecendo ao me ver ainda vestida com a roupa que havia saído de casa naquele dia fatídico. Olhei as horas em meu celular – já passava das 19h. Desci as escadas pulando dois degraus de uma só vez e na metade do caminho era possível sentir o cheiro de carne ensopada. Tia Steph estava sozinha na cozinha e assim que me viu entrar sorriu discretamente:
― Está com fome? – ela perguntou.
― Eles já ligaram? – perguntei ignorando sua pergunta.
― Ainda não, querida. Mas fique calma. Tudo ficará bem. – ela tentou me acalmar – Vamos jantar que o tempo passará mais rápido.
Sentei-me no banco de frente para o balcão e me rendi. Estava faminta, pois minha última refeição havia sido no almoço antes de ir para o trabalho. Tia Steph entendeu o recado e logo pegou o prato a minha frente e o serviu com purê de abóbora e a cheirosa carne ensopada. Jantamos em silêncio e eu não via a hora de ouvir o telefone tocar.
●●●
Saí do banho e enquanto me trocava tia Steph bateu em minha porta:
― Posso entrar? – ela perguntou.
― Sim. – respondi enquanto vestia uma camiseta qualquer.
― Eles ligaram enquanto você estava no banho – ela começou a dizer.
― E então? – eu perguntei apreensiva.
― Tudo correu bem. A cirurgia acabou a meia hora e os dois estão na recuperação, mas não poderão receber visitas hoje. – ela suspirou – Mas amanhã poderemos vê-los.
Meu coração murchou e uma enorme vontade de chorar tomou conta de mim. Eu precisava ver Ethan, precisava ver que estava realmente tudo bem. Precisava ouvir sua voz, sentir sua respiração e ver aquele sorriso torto que me deixava desconcertada.
Tia Steph saiu de meu quarto e me deixou sozinha com meus pensamentos. Eu precisava organizá-los de algum modo, mas as lembranças sempre voltavam como um rompante. Sentir-se angustiada era algo terrível, ainda mais quando a angustia vinha junto com a impotência – deixando-me de mãos atadas, sem poder fazer nada.
●●●
Na manhã seguinte, acordei com dores de cabeça, algo justificável, pois dormi muito mal na noite anterior. Meu cérebro teimava em ficar em estado de alerta, mas meu corpo já não suportava mais tanta pressão. Decidi não ir à aula – seria inútil tentar estudar pensando em tudo o que havia acontecido. Tudo aconteceu tão rápido que minhas ideias ainda estavam embaralhadas e não conseguiam acompanhar tantas informações paralelas. Tia Steph e eu tomamos café em silêncio e combinamos de ir até o hospital depois do almoço. Certamente as horas demorariam a passar e eu ficaria ainda mais ansiosa.
Em meu quarto sentei-me de frente a minha escrivaninha e comecei a pesquisar sobre transplante de fígado. Eu precisava me informar sobre aquilo, pois não conhecia ninguém que já houvesse passado por aquela cirurgia. Minha pesquisa me mostrou como o transplante acontecia, quais eram as chances de algo dar errado e quais eram os procedimentos necessários para que o transplante acontecesse. As únicas exigências eram que o doador tivesse o mesmo tipo sanguíneo do receptor, tivesse dezoito anos ou mais e um fígado saudável – Ethan se encaixava em todas aquelas exigências.
Eu conseguia imaginar o quanto ela estava feliz em poder ajudar seu pai em um momento tão complicado. Ele aprendeu da forma mais dura o quanto é importante valorizar as pessoas que deram tudo por nós. É como diz o ditado: "Só damos valor a algo quando estamos prestes a perdê-lo." Eu não tive essa chance, mas sinto um orgulho imenso dos pais que tive e da educação que eles me proporcionaram.
VOCÊ ESTÁ LENDO
SETEMBRO (concluída)
Teen FictionAbby Stuart nunca foi muito fã de clichês, mas surpreendentemente, sua vida havia se tornado um daqueles clichês bobos de filmes. Perder seus pais em um acidente de carro, mudar de cidade e começar em uma nova escola - esses eram apenas alguns que a...