Cristina havia voltado do almoço com Débora. Era dia de atender seus pacientes no consultório. Trancou-se sozinha por um instante. O primeiro paciente havia cancelado a consulta de última hora. Ela não mencionara a recente conversa com Eduardo durante o almoço com a amiga. Na verdade, estava bastante intrigada com aquela atitude inesperada de Eduardo.
Ele a questionara sobre suas razões para pedir o divórcio. Ela nunca havia dito a ele abertamente a respeito de suas queixas. Na verdade, ela e Eduardo nunca foram abertos a um diálogo franco. Eram ambos muito fechados. Para ela tudo estava tão claro a respeito de seu descontentamento, que não precisava dizer nada a Eduardo. Não é possível que ele não soubesse, não é possível que ele não achasse que seu frequente comportamento possessivo e controlador tinha dado causa ao pedido de divórcio.
Seu pensamento voa longe e vai buscar o dia em que ela tomou a decisão de se separar.
Cristina havia chegado em casa bastante animada. Tinha recebido finalmente o aval do hospital Santa Teresinha para ter seu próprio consultório. Era algo que sempre desejara, ter seu próprio consultório. Não havia nenhum disponível quando começara a trabalhar na emergência. Para ela, ter seu consultório no mesmo hospital em que atendia na emergência seria imensamente favorável. Estava realmente muito feliz. Estava bastante empolgada para dar as boas novas a Eduardo.
Lembrou-se das dificuldades que já havia passado na vida e como era bom ver que tudo estava caminhando bem. Às vezes sentia-se arrependida de ter aceitado a proposta de Eduardo para deixarem Minas Gerais. Era lá que estavam seus parentes, as pessoas queridas. Eduardo achava que ter muito contato com parentes era uma porta aberta para que pudessem dar palpite e atrapalhar suas carreiras. Entretanto, acabaram por ficar de certa forma isolados, distantes de suas famílias. Além disso, eram muito reservados, não tinham muitos amigos. Por muito tempo ela nutriu a ideia de voltar. Contudo, com o passar do tempo, acabou desistindo, pois havia criado raízes e não gostava muito de mudanças. Já estava acostumada, mais uma mudança iria novamente tirar tudo do lugar.
O telefone toca. É Débora. Cristina atende.
– Oi Débora, tudo bem?
– Oi, amiga! Estou só ligando pra dizer que ouvi as boas novas de que você finalmente conseguiu seu consultório! Estou tão feliz por você!
– Obrigada, Débora! Você não sabe como estou feliz!
Eduardo chega em casa. Cristina está ao telefone. Ele pergunta quem é.
– Então, Débora, Eduardo chegou, preciso desligar – diz Cristina, respondendo ao marido.
– De novo a Débora? – reclama ele.
– Ainda não contei a ele a novidade – diz Cristina à amiga, ainda ao telefone.
– Então, vão continuar esse fuxico por quanto tempo? – impacienta-se ele.
Cristina despede-se da amiga e desliga.
– Ué... agora não posso mais falar ao telefone? – diz Cristina visivelmente aborrecida.
– Precisa passar a vida toda? Ainda mais com a Débora.
– O que tem a Débora, posso saber?
– Ela me detesta. Vive colocando coisa na sua cabeça. Vive criando intrigas. Ela é uma péssima companhia.
– Você só pode estar de brincadeira. Virou meu pai, agora? É você quem decide quem é boa ou má companhia pra mim, agora? – retruca Cristina.
– Não sou seu pai, mas sou seu marido. Acho que mereço um pouco de consideração da sua parte, não? Acho que respeito é importante em um relacionamento, você não acha?
– Existe uma regrinha básica que diz que é preciso respeitar para ser respeitado – responde Cristina.
Eduardo está furioso. Ele para um pouco, fica calado, respira. Tenta baixar o tom.
– Olha, Cristina, me desculpa. Estou bastante chateado – responde Eduardo.
– Alguma razão específica? – pergunta Cristina.
– Não consegui ficar com nenhum dos consultórios que estavam vagos. Estava com esperanças – responde ele.
– Bom, eu ainda não te disse, mas consegui um deles.
– Como é que é? – diz Eduardo, surpreso.
– É isso que você ouviu, um desses consultórios agora é meu.
Eduardo ficou visivelmente aborrecido.
– E por que dariam o consultório pra você e não pra mim? – indagou ele.
– E por que não dariam o consultório para mim? – retruca Cristina.
– E desde quando você pleiteava um dos consultórios? Por que não me disse? – pergunta ele.
– Eu te disse. Parece que você não deu muita importância.
– E isso significa que você vai passar mais tempo fora de casa, ou estou errado?
– Sim, significa. Qual seria o problema? – pergunta Cristina.
– O problema é que você e eu não conversamos a respeito – responde ele.
– E você lá conversou comigo a esse respeito quando também pleiteou um dos consultórios? – retruca ela.
– A questão é quanto a nós dois enquanto um casal.
– Continuo sem te entender, Eduardo. No que isso nos afeta enquanto casal?
– Ora, Cristina, e eu? Como eu fico nessa história?
– E você, o quê, Eduardo?
– Aonde eu fico em tudo isso?
– Como assim, não estou te entendendo!
– E quando você vai ter tempo pra mim, Cristina? E nós? Quando você vai ter tempo pra nós? – questiona Eduardo.
– Eduardo, somos só eu e você aqui, não temos família, não temos amigos, meu tempo fora do trabalho é todo seu. Você implica com tudo! Você faz todos os cursos que quer, marca compromissos que bem entende e nunca me consulta. E agora vem com essa conversa? Sabe o que está parecendo? Que você não quer me ver progredir, que você não quer que eu tenha amigos. Você quer atenção exclusiva.
– Tudo o que você pensa é trabalho e mais trabalho. Só isso. O tempo todo – diz Eduardo. – Você é minha esposa, Cristina, dedicar tempo e atenção ao seu marido seria um problema? E quando tivermos filhos, como vai ser?
– Quando acontecer, você e eu podemos reduzir nossas cargas de trabalho. No momento, como você pode perceber, não temos filho nenhum – responde ela.
– E pelo andar da carruagem não é por agora que vamos fazer um – diz ele.
– Eduardo, do que você está falando? – pergunta ela.
– Do que eu posso estar falando, Cristina, me conta? Eu estou falando de sexo, é disso que estou falando. Nós não temos tido tempo nem para procriar. E você ainda vai achar mais coisa pra fazer!
– Que procriar o que, Eduardo? Você nunca falou em filho nessa sua vida, agora me vem com esse papo furado!
Cristina de repente enxergava claramente a manipulação de Eduardo. Como ela pôde ter se submetido ao domínio dele por tanto tempo? Como?
– Eu ter decidido agora levantar esse assunto não significa que eu não tenha pensado nisso antes. É claro que eu já pensei nisso. Alguma hora o assunto tinha que surgir, ué! A gente não tem tido tempo pra transar, pra conversar, pra ficarmos juntos... Eu preciso te falar as coisas em algum momento. Você não me diz o que pensa, não me diz o que sente... E, pelo visto, também não me diz seus planos.
– Eu já tenho que dar conta de você, vou ter que dar conta de filhos? Sabe, a impressão que eu tenho é que eu sou invisível pra você! Você só enxerga os meus defeitos, Eduardo! Eu tô cansada de tudo! Eu não aguento mais suas exigências. Não aguento suas manias. Não aguento mais essa sua manipulação! Você é a pessoa mais egoísta e narcisista que eu conheço! Você não tá nem aí pra mim, vai lá se importar com filho?
– Que conversa é essa digo eu, Cristina! Você só pode estar maluca! Sou eu que não te enxergo? Ou é você que se esconde?
– Eu devo estar maluca? Sério? Na falta de um bom argumento, aí só resta você me chama de maluca! E uma coisa eu te digo, você definitivamente não vai me enlouquecer! Não vai! O consultório é meu e eu vou ficar com ele sim! Não importa o que você diga!
Eduardo estava enfurecido, não sabia o que dizer nem o que pensar. Aquele comportamento de Cristina o pegara completamente desprevenido. A situação fugira totalmente ao seu controle e ele simplesmente não sabia lidar com algo tão inesperado. Esmurrou a parede. Tão forte, que se machucou. Abriu a porta da rua e saiu, batendo-a com todas as forças que pôde reunir.
Meu Deus do céu! O que tinha sido aquilo? Cristina parou para pensar. Era como se estivesse acordando de um transe. Entendia finalmente que determinadas atitudes de Eduardo estavam lhe prejudicando emocional e psicologicamente. Aquilo que no começo parecia um excesso de atenção e zelo havia se transformado em um relacionamento extremamente tóxico. Eduardo aos poucos tornara-se uma pessoa que não a permitia crescer, exigia-lhe explicações o tempo todo, não a deixava visitar amigos nem familiares.
Sentia-se cansada, Eduardo lhe absorvia as energias e toda sua vitalidade. Viu seu próprio reflexo no espelho que ficava na sala. Enxergou uma mulher sem autoestima, sem sonhos. E agora Eduardo tentava diminuir aquilo que ela considerava uma grande conquista. Aliás, era o que ele sempre tentava fazer: diminuir suas conquistas. Só ele podia ser elogiado. Só ele podia comemorar vitórias. Naquele momento Cristina finalmente entendia que ele realmente não queria ver seu sucesso profissional e nem pessoal. Não a admirava nem elogiava em nada que ela fizesse, estava pronto para apontar seus erros e defeitos.
Lembrou-se que sempre Eduardo dava indiretas de como ela deveria se vestir, se comportar, sempre com um comentário tóxico. Por muitas vezes viu-se escolhendo suas roupas pensando em evitar as reclamações do marido. Ela estava sempre tentando fazer de tudo para evitar os comentários desagradáveis e ainda assim sentia-se culpada. Ela, frequentemente pegava-se acabava se questionando "O que eu fiz de errado dessa vez?", como se todas as brigas, todos os problemas e desentendimentos fossem responsabilidade de Cristina.
No começo, Eduardo era um excelente esposo. Calmo, comedido, atencioso. Mas aquele homem centrado, de fala pausada, aos poucos começara a dar lugar a um ser humano ciumento, possessivo e controlador. Ele não era assim. Não era aquele homem que a tinha conquistado, não era aquele homem com quem ela tinha se casado. Não sabia dizer porque ele estava tão mudado. De repente, começou a irritar-se com frequência, sempre acusando a esposa de ter feito algo ruim. Parecia estar sempre estar buscando algum motivo para discutir e para fazê-la sentir-se mal. Tornara-se um homem incapaz de reconhecer os próprios erros.
O que todos imaginavam é que eles formavam o par perfeito. Seus amigos e familiares tinham a mais absoluta certeza disso. Ninguém desconfiava um pingo sequer que a vida de Cristina havia se transformado em um tormento. E, o pior de tudo, um tormento silencioso.
Correu então para o quarto. Pegou as malas. Estava pálida, suas mãos estavam geladas. Enxergava finalmente a prisão na qual estava vivendo. Ninguém jamais poderia imaginar. Com exceção de Débora, sua amiga e confidente. Eduardo a detestava com todas as forças de seu ser. E agora detestaria ainda mais. Era para a casa da amiga que estava de partida.
Escolheu algumas roupas e pertences. Jogou de qualquer jeito nas malas. Tirou a aliança do dedo e a colocou sobre a mesa e saiu levando as malas. Aquele seria definitivamente seu último dia ao lado de Eduardo.
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Recomeço
RomanceUm terrível acidente une os destinos de Cristina - uma médica dedicada, que ama o que faz - e Carlos - um homem impulsivo e cativante. Sua vida está agora nas mãos competentes de Cristina. Depois desse encontro de destinos suas vidas jamais serão as...