Prólogo

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— Você tem certeza do que está fazendo, Dulce? Está indo embora da cidade em que cresceu, saindo de sua casa sem levar praticamente nada, deixando todos para trás...

— Não quero levar nada daqui que não seja o necessário, mãe! — e o necessário se resume em minhas roupas, livros e Pantera, o gato preto mais gordo do mundo.

— Não estou acreditando que você está indo embora, deixando o Paco. Minha filha, são tantos anos juntos e... Você nem mesmo tentou superar isso.

— Mãe, chega! — peço sentindo meus olhos ficarem úmidos e o nó se formar em minha garganta — Eu tentei, ok? Não é justo mantê-lo preso a mim, não estamos felizes juntos. Então, por favor, respeite minha decisão.

— Tenho medo de que tenha outra recaída... Não quero perder você também — vejo as lágrimas escorrerem por seu rosto e suspiro chateada.

Não posso culpá-la por ficar tão preocupada, já que eu tinha afundado em uma depressão severa e não fiz o menor esforço para melhorar por muito tempo. Esse é um dos motivos para eu estar indo embora.

Sempre amei morar em uma cidade pequena que tinha uma comunidade unida, mas no último ano tudo isso vem me sufocando. Não aguento mais chegar aos lugares e me deparar com os olhares de pena. Pena da mulher que perdeu o filho de uma forma súbita e da mulher que eu me tornei após a morte dele. Já vi esses olhares antes quando perdi meu pai e não posso mais encará-los.

— Vou ter uma recaída se eu continuar aqui, mãe — explico, paciente — Eu nunca mais vou ter a minha vida de volta, está bem? Então preciso construir uma vida nova, em um lugar novo, sem que todos saibam de tudo. Preciso me encontrar outra vez e voltar a escrever. A Mai tem sido paciente comigo, mas isso não vai durar a vida inteira.

Afinal, eu já ultrapassei todos os prazos que a editora me deu para entregar os livros. Entretanto... Como vou conseguir continuar escrevendo meus romances quando minha vida inteira está de cabeça para baixo?

Há alguns meses, quando comecei a lutar contra a depressão, eu tentei escrever. Por dias fiquei sentada encarando uma tela em branco e simplesmente não saia uma única palavra. Isso me deixou ainda pior do que antes. As palavras costumavam fluir através de mim e agora eu preciso lidar com prazos atrasados e um bloqueio criativo sem fim.

O que eu não conto para ninguém, exceto para Liana, minha psicóloga, é o medo de nunca me curar desse bloqueio. Tudo o que eu sei fazer nessa vida, é ser mãe, esposa e escritora. Meu filho morreu, meu casamento acabou, o que será de mim se minha carreira acabar também?

— Terminou de empacotar tudo? — Paco pergunta ao entrar em meu antigo escritório.

— Essa foi a última caixa.

— Vou colocar no carro e podemos ir.

Espero que Paco saia do escritório para me aproximar da minha mãe. Seguro suas mãos e olho em seus olhos. Quero que ela consiga entender os meus motivos e que respeite minha opinião.

— Eu preciso disso, mãe. Se eu continuar aqui, tudo o que vai ter é uma filha sem vida e você não quer isso.

— Promete que vai me ligar todos os dias?

— Prometo que vou te ligar uma vez na semana e você pode ir me visitar nos finais de semana, está bem? — respondo rindo — Não estou indo para longe, mãe. É apenas uma hora de distância, morei lá durante a faculdade, Paco praticamente trabalha lá. Tenho certeza de que ele vai amar levá-la quando quiser ir.

— Tudo bem, minha filha. Se cuide, está bem? — cede, me puxando para um abraço apertado. Aquele abraço de mãe do qual nunca queremos sair, mas no meu caso, é muito necessário que saia.

— Obrigado, mãe!

XXX

Me jogo no sofá enquanto observo Paco em cima da escada metálica prendendo um nicho em minha parede. Ele havia comprado - sem me consultar, importante dizer - nichos e prateleiras para gatificar meu apartamento. Não que eu saiba o que isso significa, mas, aparentemente, ele fez algumas pesquisas e isso tornaria a mudança menos estressante para Pantera.

Eu duvido muito disso, já que eu o tirei da casa em que ele foi feliz e o trouxe para morar em um apartamento pequeno com a pessoa que ele mais odeia no mundo: euzinha! Mas não quero dizer isso a Paco, que parece mais empolgado que o gato com os brinquedos.

— Prontinho! — ele desce da escada e observa atentamente a confusão de nichos, prateleiras e pontes. Isso mesmo, tem uma ponte na parede da minha sala. Paco parece satisfeito com o resultado, já que começa a guardar as ferramentas — Terminei de montar todos os móveis que chegaram. Agora podemos começar a limpar tudo e arrumar suas coisas.

— Você sabe que não precisa ficar, não é? Nem precisava ter vindo, Paco.

— Dulce, não é porque estamos separados que eu vou deixar de cuidar de você e te ajudar quando precisar. Concordei com o divórcio, que se mudasse... Entendo que precisa disso, mas não peça para que eu me afaste, porque isso não vou saber fazer.

— Nunca te pediria isso. Eu preciso de você em minha vida.

E é verdade! Paco esteve comigo nos últimos dez anos, nos meus momentos mais felizes e difíceis. Jamais conseguirei viver sem nenhum contato com ele. Sei que não tinha mais nenhuma condição de continuarmos casados, não estávamos felizes, já não nos encaixamos mais depois que Fernando se foi, mas ainda o quero como amigo.

— Nossas quartas-feiras ainda estão de pé, ok? — concordo sorrindo. Costumamos sair para jantar todas as quartas desde que começamos a sair juntos, é uma pequena tradição que não queremos abrir mão — Dulce, desculpa pelo que vou dizer, mas se eu perceber que você está recaindo, não vou pensar duas vezes em te levar de volta, ok?

— Isso não vai acontecer, Paco. Algo me diz que vou conseguir me reencontrar aqui.

— Fico feliz! — sorri largamente me olhando — Só quero que seja feliz.

Consigo convencer Paco a ir embora sem me ajudar a limpar e organizar as minhas coisas, porque se ele ficasse pegaria estrada a noite ou teria que dormir ali e eu não queria que nenhuma das duas coisas acontecesse. Então preciso limpar e organizar tudo sozinha, o que me faz bem, para ser sincera.

O apartamento é pequeno, dois quartos, uma sala e uma cozinha pequena com uma área de serviço. Completamente diferente da casa enorme e espaçosa que eu morava antes. Paco foi generoso o suficiente para me oferecer a casa, mas nem que eu continuasse morando na cidade, poderia morar sozinha na casa em que tínhamos sido uma família, em que Fernando nasceu, cresceu e se foi sem nem nos preparar para isso. Então usei a minha parte do dinheiro que recebemos do seguro de vida dele para comprar e mobiliar aquele apartamento. Paco tentou me oferecer a parte dele para que comprasse um lugar maior, em um prédio que tivesse ao menos um elevador, mas eu gostei daqui.

É um condomínio pequeno, com apenas cinco prédios e estacionamento no pátio, e quando entrei no apartamento para visitar, tive um pressentimento bom de que minha vida mudaria. Então aqui estou eu, rezando para que esse pressentimento não tenha sido apenas um ataque de ansiedade disfarçado.

— As coisas vão mudar, vou me reencontrar aqui, eu sinto isso — sussurro para mim mesma antes de fechar os olhos e dormir exausta.

O vizinho de cimaOnde histórias criam vida. Descubra agora