XXII

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Livros, livros e mais livros. Encontrava-me parada diante de John em um escritório do segundo andar da mansão Solomons. O lugar era repleto de prateleiras enormes que iam do chão ao teto, repletas de centenas de exemplares e alguns objetos antigos que deslumbravam-me cada vez que pousava meus olhos em alguma parte diferente. A sala havia sido estrategicamente escolhida por ter mais de uma saída, caso houvesse emergência.

-Isso é realmente necessário?

      Interviu Alfie, ainda tentando mudar a ideia de Tommy sobre o ritual que estava prestes a ser realizado: um pacto de sangue. Remontava à cultura cigana e, segundo Polly me explicara sucintamente, era bem mais do que um contrato comum como o de papel que acabávamos de assinar com tinta. O sangue dos participantes, uma vez misturados, criava uma associação vital que permaneceria mesmo após a morte do corpo físico.

-Somos Ciganos, Alfie. Como você mesmo sempre fez questão de lembrar.

     Relutante, Alfie levantou o pequeno punhal depositado sobre a mesa. O objeto metálico e afiado, antes envolto em um pano de seda branco, foi entregue à John. A fina lâmina fora cirúrgica ao abrir um pequeno corte na palma de minha mão direita, quase indolor. Sangue imediatamente emergiu, fresco e vivo. Fiz o mesmo, cuidadosamente, na mão dele. Trocamos olhares ternos e fixos enquanto ouvíamos algumas palavras lidas por Arthur, transcritas de última hora por Tommy em um pequeno papel amassado. Nossas palmas estavam contrapostas, misturando, enfim, o sangues dos Shelby ao dos Solomons. Almas condenadas a estarem juntas pela eternidade.

-Pode beijar a noiva, John-Boy! - exclamou Arthur, jogando o papel pra cima e fazendo-nos rir.

John me puxou suavemente pela cintura e nos beijamos entre sorrisos. Por um breve segundo, desejei que o tempo congelasse e nos capturasse pra sempre ali. Entre a paz e a guerra, jamais teríamos de ver as consequências terríveis que enfrentaríamos num futuro próximo. Vidas, sofrimento, lágrimas seriam preservadas.

O caráter deslocado daquela situação no contexto geral era inegável. Me sentia quase culpada e egoísta pela breve felicidade que sentira espontaneamente por estar me casando, ignorando o caráter bélico do contrato que acabara de selar.

     Sem pompa, sem buffet, sem festa. Nossa comemoração foi brindada com copos de whisky e charutos importados. Estratégias, táticas, armas e quantidade de munição haviam se tornado rapidamente o centro de toda conversa.

     Entediada, deixei de estar ao lado dos homens e fui sentar-me em um sofá de dois lugares próximo à janela de vidro e madeira maciça, agarrando as pontas do meu sobretudo e me amaldiçoando por não ter colocado um vestido de inverno. O outono já mostrava suas cores nas folhas das árvores, oscilantes ao sabor do vento.

     Estava com frio e sonolenta por não ter dormido durante a viagem. O som do canto de um ou dois pássaros, aventureiros na névoa fria, esvaziava minha mente de qualquer pensamento. Entretanto, não havia posição confortável para estar. Os emplastos esparadrapados na lateral do meu tórax  só me permitiam continuar com a coluna ereta.

     O sol finalmente despontava no horizonte, mostrando seus primeiros raios por trás da gélida e monocromática Londres. Meus olhos pesavam cada vez mais. Apoiei o cotovelo contra o braço estofado de tecido azul escuro do sofá e repousei minha cabeça o mais confortável que podia, sobre a palma da mão.

     Em meus entre-sonhos, ouvi alguns passos abafados aproximarem-se. Senti meu corpo elevando-se levemente para cima quando alguém se sentou-se ao lado. Algo quente e macio, feito de tecido, envolveu-me confortavelmente. E, por fim, puxaram-me para apoiar meu corpo em algo mais quente e agradável . Reconheci naqueles gestos o carinho de John, logo, não preocupei-me em abrir os olhos.

Blind Love || John ShelbyOnde histórias criam vida. Descubra agora