Prestando Esclarecimentos

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Os funcionários do necrotério me olhavam temerosos. Ao entrar numa sala sinto primeiro um forte cheiro de formol, o que me embrulhou o estômago. Sorte que não havia tomado meu café da manhã.

Eu entrei em uma sala cheia de mesas prateadas com alguns corpos em cima. O fedor da morte estava em todos os lugares ali. No fundo da sala eu vi o que mais parecia ser um quebra cabeça do tio Thomas. O corpo dele estava despedaçado mas não tive dúvidas que era ele. Ao lado, havia outros dois corpos. Um deles logo reconheci também... Era de tia Ruth também em pedaços, como se os membros e a cabeça estivessem descolados do corpo.

Na outra mesa estava um corpo tão branco que parecia um albino sem cor ou sangue. Preciso me aproximar um pouco mais. Apesar de estar totalmente sem cor dava pra saber que era Raul. Com uma lágrima nos olhos eu não consigo dizer nada. Apenas confirmo com a cabeça que ali estavam meus ditos familiares.

Acho que a cidade nunca tinha visto um crime tão agressivo. Quem seria capaz de tamanha brutalidade? Será que Luna foi levada como refém? Ou será que tinha escapado por sorte? Qual o motivo de tudo isso?

As perguntas não paravam de surgir em minha mente. Seriam os visitantes os responsáveis pelo ataque? Coitada de Luna. Lembro dela combinando feliz com as amigas uma festa para o seu aniversário, que seria no outro fim de semana...

Alguém me carregou pelo braço, me puxando até a viatura. Quando o carro parou, percebi que estava numa delegacia. Alguém me conduziu para dentro, me fazendo sentar em uma sala separada de todos e ainda me ofereceu um café, que eu aceitei sem perceber.

Despertei com um policial sentando à minha frente.

-- Bom dia rapaz, sou o detetive André. Primeiro quero lhe dizer que já conferimos seus álibis e como você foi visto em público grande parte da noite, você está aqui apenas para prestar esclarecimentos. Então, primeiro, me diga o que sabe de Luna.

Eu disse que não ficava muito em casa por conta dos empregos e que sabia que ela possuía várias amigas que poderiam dizer melhor as coisas a respeito de sua vida. Passei até alguns nomes que conhecia. Mas afirmei que, ao meu ver, ela só tinha problemas de relacionamento com seu irmão. Parecia amar os pais.

Também me questionou o que eu sabia dos visitantes daquela noite, de meus empregos, minha vida pessoal, da carta de minha mochila com o dinheiro e dos motivos de eu estar saindo de casa. Ele me fez muitas perguntas e inúmeras delas nem eu mesmo conhecia as respostas. Ele repetiu todas elas por duas ou três vezes, acho que pra ver se as respostas seriam as mesmas. No fim, acho que o delegado percebeu que estava sendo sincero.

Passei boa parte do dia lá. Quando sai da delegacia, já estava anoitecendo. Resolvi ligar para Betty me buscar pois eu não costumava ir naquele lado da cidade e não sabia bem como voltar. Entrei numa lanchonete que encontrei ali perto e mandei a localização pra minha amiga.

Meu estômago pedia comida urgente. Não tinha comido nada o dia todo. Apenas bebera diversas xícaras de café enquanto era interrogado. Olhei pro cardápio e resolvi pedir um lanche que pensei que sairia mais rápido. Também peguei um suco de lata. Enquanto comia, Betty chegou e me deu um longo abraço. Ela estava com o rosto vermelho, parecia ter chorado.

-- Ahhh Thony. Que tragédia! -Disse com lágrimas nos olhos. -- Saiba que a partir de agora é oficial. Você é meu irmão. Minha mãe e eu seremos sua família.

Eu a dou outro abraço agradecendo seu carinho. Peguei em minha mochila a carta que encontrei do tio Thomas.

É claro que estava muito chateado. Apesar de não suportar mais aquela vida, era a família que eu tinha. Eles me resgataram, acolheram e me criaram. Eu vivi toda a minha vida acreditando que eram mesmo meus parentes. Mas no fim, eu já não tenho uma família há quase 19 anos...

Ela não disse nada a respeito da carta no primeiro momento, apenas colocou a mão na boca enquanto a lia. Betty percebeu minha mágoa...

-- Bem... e a polícia? Vai te deixar ir embora da cidade comigo?

-- Deixarão sim. Perceberam que não têm motivos para me segurar aqui, visto que não tenho mais um lar ou família na cidade e não encontraram nada que pudesse deixar dúvidas ou me incriminar. Mas me fizeram passar todos contatos e endereços de onde poderiam me encontrar se necessário.

-- Que bom. Será melhor você mudar de ares. Acho que precisa descansar agora. Vamos para casa. Você pode tomar um banho e dormir em minha cama hoje. Eu vou dormir com minha mãe. Assim você fica mais à vontade e descansa melhor. Deve estar exausto. Podemos, se quiser, pegar a estrada amanhã logo depois do almoço.

Nesta hora o céu estava cinza escuro, mas não caiu nenhuma gota. Parecia que as nuvens estavam se segurando da mesma forma que eu me prendia para não demonstrar meu desespero.

Já no caminho da casa dela eu digo:

-- Eu acho que preciso providenciar os velórios...

-- Não soube ainda? Enquanto eu aguardava notícias perto da sua casa, chegou um senhor dizendo ser pai de seu tio, digo, de Sr. Thomas.

-- Pai??? Nunca fiquei sabendo de nenhum familiar deles...

-- Mas pelo visto ele provou quem era, apresentou documentos e alguns policiais o levaram em seguida. Uma amiga da minha mãe, da polícia, disse que os familiares já estavam providenciando os enterros.

-- Bom, que seja. De qualquer forma eu ligo no necrotério amanhã pra saber disso.

Fui recebido por mais um carinhoso abraço da tia Kátia. Depois do banho eu deito na cama da minha nova irmã, mas não consegui dormir de imediato. Ainda estava tentando processar todo aquele dia... Devo ter caído no sono só com a madrugada já avançada.





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