Capítulo 31

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— Tudo bem por aí?

Ela levantou os olhos e sorriu.

— Eu não sei o que fazer. Você acabou comigo outra vez.

Sorri, girando entre os dedos uma peça já descartada do jogo.

— Vamos lá, você terá que dar conta disso sozinha.

Anne torceu o nariz e moveu o seu rei em plástico branco para a posição D3, escapando do ataque da minha torre.

— Como vou evitar seu xeque-mate? Você tem uma rainha na A4 e continuar indo para a frente vai ser cavar meu próprio túmulo. Uma perca certa.

— Se você se lembrasse de repassar as jogadas que te ensino enquanto estou fora, talvez conseguiria evitar esses ataques — disse, colocando meu cavalo na casa D5.

— Ok, eu me rendo! — Anne exclamou jogando as mãos para o ar e chocando as costas contra a parede do quarto de hospital. Com tanto tempo livre e cansada de assistir filmes ou reprises de seriados, tivemos que encontrar outras coisas para fazermos naquele cubículo branco. — Minha única chance de escapar era pelas laterais e você acabou de me prender também! Pronto, eu avanço minha peça, você a come e talvez da próxima vez eu consiga usar esse reino em um governo mais próspero.

— Dizer isso em todo fim de partida não vai te ajudar a me vencer, você treinar vai.

Após Anne colocar seu rei ao alcance da minha rainha, fazendo careta para mim, eu o retirei da jogada de uma vez por todas e admirei por alguns segundos o tabuleiro com apenas quatro peças negras ainda de pé.

— Se no próximo jogo você não me vencer eu também vou jogar com as peças brancas. Sempre deixo você usá-las para ver se começando primeiro consegue me derrotar, mas estou a um passo de desistir de ser boazinha com você, Anne. Trate de ler cartilhas de auxílio, jogar sozinha, contratar um professor ou qualquer outra coisa, mas me vença.

Anne achou graça na minha tentativa de ameaça.

— A senhora Carly denunciaria você por incentivo de jogos de azar à menor e incapaz se eu a pedir para me contratar aquele garoto do norte da cidade que foi para o campeonato regional de xadrez e terminou em segundo lugar.

— Mas xadrez não é jogo de azar — disse, arqueando uma sobrancelha.

— E a senhora Carly também não entende nada de leis.

Ri, antes de me levantar e afastar a mesa, que havíamos levado três dias para convencermos Isabella a consegui-la para nós, de perto do leito hospitalar onde Anne estava sentada com as pernas encolhidas. Como tínhamos apenas uma poltrona, um dos bancos tinha que ser a cama e era necessário devolver a mesa para o canto da parede sempre que nossas partidas eram finalizadas, o que as vezes fazia um pouco de barulho e certa vez resultou no aparecimento de um enorme homem, que eu poderia jurar não dar conta de atravessar aquelas portas sem se abaixar, em nosso quarto, alegando que precisava de silêncio para colocar sua mãe dormir. Nós pedimos desculpas e desde então tentamos ser as mais sutis possíveis, mas vez ou outra um chiado estridente ainda insiste em escapar dos pés de aço do móvel.

— Você está bem? — perguntei, após dar um beijo em Anne.

— Essa coisa incomoda quando quero dormir, mas fora isso estou ótima — ela respondeu, ajeitando a cânula no nariz. Já haviam se passado dias desde o transplante e estávamos aguardando os resultados dos últimos exames que ela havia feito para sabermos qual o nível de aceitação que seu corpo havia tido em relação à nova medula. Anne não tinha mais nenhum cateter inserido em seu corpo, mas a doutora Laurent preferia que ela usasse a cânula quando se sentia um pouco fraca, para facilitar sua respiração.

Do Outro Lado do AtlânticoOnde histórias criam vida. Descubra agora