Capítulo 26

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Capítulo com gatilho

Naquele dia eu voltei a trabalhar e embora estivesse complicado, tentei voltar à rotina. Os dias se arrastavam sonolentos e vagarosos. Minha rotina se repetia em trabalhar, estudar e visitar Anne. Eu já não ia ao haras com a mesma frequência e quando ia, raramente chegava a montar. Passava por lá apenas para ver Kevin e dar uma olhada em Ben, que sempre me recepcionava com uma resfolegada em meu rosto.

Nos primeiros dias após iniciar o tratamento, Anne se sentia bem abatida. Perdeu a fome e sua sensibilidade praticamente triplicou, mas conforme seu corpo foi aceitando a medicação ela melhorou consideravelmente, porém, a queda de cabelo apenas aumentou.

Foi doloroso presenciar as cenas em que penteava o cabelo e quase um terço dos fios ficavam na escova. No início ela conseguiu manter a pose e fingir para si mesma que não era nada grave o que acontecia consigo mesma, mas chegou a um momento que sua queda de cabelo era tão grande que, em um domingo que Anne estava passando comigo e Zoe, após voltarmos da igreja, ela pediu para que desligasse a televisão. Um olhar triste cortava sua expressão e fazia com que seus traços alegres desaparecessem do seu rosto. O brilho dos olhos negros havia desaparecido e a boca não passava de uma linha fina e inexpressiva.

Eu realizei seu pedido e me virei para ela com atenção, então quando Anne disse que queria ir até um salão de beleza, não pude impedir que um nó se formasse em minha garganta pois já sabia o que ela queria fazer lá. Era inevitável e uma hora ou outra aconteceria, mas eu não conseguia aceitar que tudo aquilo estava acontecendo tão rápido.

Zoe me encarou do outro lado do sofá, preocupada, mas eu apenas apertei os olhos, respirando fundo, e respondi a Anne que a gente poderia ir, mas que ela deveria ser forte pois não seria fácil. Então depois de avisar a senhora Carly do que provavelmente iríamos fazer, fomos até o salão mais próximo do condomínio.

Após esperarmos alguns minutos, o cabelereiro perguntou o que desejávamos e Anne soltou um longo suspiro antes de responder:

— Raspar o que me resta de cabelo. — As palavras vazias, mas cortantes. Sete palavras que, juntas, desabavam meu mundo.

Ele pareceu surpreso e um pouco chocado, mas não disse nada de imediato, porém, quando pegou a máquina elétrica, ligou-a e a aproximou da cabeça de Anne, hesitou. Encarou ela e depois a mim, que tinha permanecido calada em um canto do salão o tempo todo.

— Vocês têm certeza disso? Se eu começar não terá mais volta.

Engoli em seco, enquanto sentia o nó na garganta apenas aumentar.

— Tenho certeza, vá em frente — Anne respondeu, encarando seu reflexo no espelho. — Teria que fazer isso uma hora ou outra, então que seja agora.

O cabelereiro me encarou, ainda hesitante.

— Antes que insista, senhor, eu faço quimioterapia — ela o interrompeu. — Meus cabelos estão caindo gradativamente, cada dia mais. Vou ficar careca de qualquer maneira, então raspe isso logo, por favor.

Uma lágrima escorreu pela sua bochecha após se calar.

O cabelereiro engoliu em seco, se calando, então ligou o pequeno aparelho em suas mãos novamente e cortou devagar todos os longos fios negros de Anne poucos centímetros longe da raiz. Após a primeira etapa ser finalizada, cuidadosamente ele começou a passar o aparelho na cabeça da garota, raspando seu couro cabeludo e deixando-o nu. Pouco a pouco seus cabelos iam diminuindo e sumindo de onde eram tão fartos... as mechas caíam como as lágrimas que escorriam em sua face.

O zunir da máquina entrava pelos meus ouvidos e parecia ecoar em cada parte do meu corpo. A cada vez que sua lâmina tocava o couro cabeludo de Anne, a agonia percorria em cada osso do meu corpo. Aquilo não era apenas uma garota raspando a cabeça, era mais uma parte da luta de uma adolescente negra que sofreu discriminação dentro de casa desde muito cedo e que não recebeu o amor de mãe que toda criança necessita. A batalha de alguém que perdeu o irmão e foi julgada pela figura mais importante de sua vida, enquanto não passava de uma criança, do sofrimento da garota que foi abandonada aos oito anos de idade e que teve que enfrentar a vida sozinha porque não tinha uma família para apoiá-la. Representava a guerra que Anne havia travado contra tudo e todos para poder resistir ao mundo.

Do Outro Lado do AtlânticoOnde histórias criam vida. Descubra agora