Fim

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      O lugar recende a mofo, a única luz provém de um pequeno basculante semiaberto, deixando boa parte no cômodo à penumbra. É pequeno, teto baixo, preenchido por caixas de papelão e livros empilhados nos cantos. Logo que subimos, nossa primeira visão é Vindre parado com os braços para trás em seu roupão laranja, olhando para nós. Chris tropeça no último degrau. Parece assustado. Com o coração na mão, me apoio no piso de madeira e me iço para cima, arregalando os olhos para ver bem através da pouca luz.

      Primeiro Vindre, levemente encurvado devido à altura do teto. Depois, Birc.

      Birc está escorado na parede, obviamente sem qualquer problema para manter-se de pé, já que nem o fio de cabelo verde mais rebelde sequer roça no teto. Ele vira o rosto para mim e me lança um sorriso tão debochado que sinto cada pelo da minha nuca se eriçar de ódio.

      — O que ele faz aqui? — é o primeiro que pergunto.

      Me sinto ligeiramente enjoada, minhas mãos suam em punhos aos lados do corpo. Não consigo envitar a repulsa em rever Birc, em carne e osso, com seu macacão surrado e seu olhar maquiavélico que sempre cintila de prazer ao ver alguém sofrer. Que não me peçam para ter empatia com alguém assim porque sei que jamais serei capaz. Vindre respira fundo. Mesmo sem conseguir discenir bem seus traços à penumbra, posso perceber suas olheiras fundas e seu aspecto cansado. Ele passara dias desacordado. Não se sabe em que mais o choque lhe afetou, só o que sabemos é que qualquer homem normal, de forma alguma, teria sobrevivido.

      — Pensei que já haviam te comunicado...

      — Sim. — embora esteja incerta, minha voz soa mais séria do que se esperaria. — Sim. Chris me contou algo.

      Desvio o olhar para Birc. Há mágoa, receio e ódio em uma mescla genuína. Ele faz um breve aceno com a cabeça, sem apagar o sorrisinho cínico que tanto detesto. Não sinto que possa perdoá-lo, nem mesmo fingir que está tudo bem entre a gente. Seja qual for a intenção, Birc torturou cada um de nós da forma mais cruel possível — bagunçando nossas mentes. Quando não o fazia, assistia tranquilamente como se visse seu programa de TV favorito. Não sei como funciona nesse mundo, mas no meu, pessoas assim deveriam passar boa parte da vida atrás das grades.

      — Que foi, gracinha? — diz Birc, por fim.

      Pestanejo, voltando-me novamente para Vindre com uma nova onda de raiva.

      — Está dizendo que, depois de tudo o que ele fez, ele merece sair como o mocinho? O cara literalmente torturou minha família...

      — Emma — Chris segura meu braço. O contato dos seus dedos frios com minha pele me faz calar.

      — Olha, Emma — Vindre diz. Sua voz está rouca e baixa e ele se aproxima mais. Posso ver sua expressão vazia, seus olhos parecendo negros sob a pouca luz brilhando enquanto alternam-se entre os meus. Ele pega uma de minhas mãos e, com delicadeza, solta meus dedos que estavam apertados contra a palma. — Sei que está sendo confuso para você. Muitos pensam que o mundo está dividido entre vilões e mocinhos, preto e branco, e não é bem assim. Você foi enganada por pensar que haviam apenas duas opções em uma variedade de alternativas. Quando entrou no castelo, éramos de exércitos opostos. — dessa vez, sua voz torna-se ainda mais suave. Sua mãos segura a minha e, por mais que tente, não consigo desviar o olhar. — Se foi comprovado que sou o mocinhos... você seria a vilã?

      — Não! — respondo imediatamente, puxando minha mão da sua de supetão. — Eu nunca...

      — Exatamente. — ele se limita a balançar a cabeça. — Você lutou ao lado do inimigo sem saber. Existem pessoas que cometem crimes horríveis em prol de um bem comum. Birc protegeu vocês, mesmo que seja difícil acreditar. Ele estava ao lado de Arismir como espião, cuidando para que todo o plano corresse bem, ou o mundo sofreria consequências gravíssimas.

      Eu apenas balanço a cabeça, incrédula. Me sinto ligeiramente ofendida por ser obrigada a ouvir esse discurso que prega compreensão a alguém tão frio como Birc. É como se tentassem me convencer da existência de uma realidade paralela que ferisse todos os meus princípios, e, no fundo, eu acabasse por descobrir que é verdade. Sim, tudo o que Vindre diz faz total sentido, mesmo que me doa e que eu não queira aceitar. Birc, em seu canto, parece deliciar-se com minha negação, enfiando as mãos nos bolsos e puxando um longo suspiro.

      — Tampouco é para tanto. — diz, divertindo-se. — Eu não diria que sou um mocinho. Sei lá, os mocinhos são sempre tão bonzinhos, certinhos, tudo tão no diminutivo. Eu só tenho mais inteligência, óbvio que vou ficar do lado mais promissor.

      Sinto que preciso ir embora antes que o nervosismo me faça perder o controle. Não consigo olhar para Birc e não sentir repulsa. Meu coração bate rápido, meu estômago revira e meus dentes rangem de pura raiva.

      — Foi para isso que nos fez subir? — disparo para Vindre, que parece surpreso com o súbito tom elevado de minha voz. — Para nos falar sobre a bondade oculta de Birc Clevius?

      Vindre pigarreia, recuando. Ele vai até o basculante, espia lá fora e em seguida o fecha, cortando o único filete de luz que havia na sala. Por instantes, estamos imersos em escuridão, até a sala ser iluminada por uma repentina onda de luz. Vejo o instante em que as pupilas de Birc diminuem feito as de um gato, dando lugar ao dourado. O verde de seu cabelo parece grama em um dia ensolarado.

      — Eu não seria tão tolo.

      Vindre se vira de volta, mostrando-nos a fonte de luz em sua mão. É uma pequena bolinha prateada. Parece uma estrela, irradiando luz como o próprio sol. Chris e eu nos entreolhamos. Chris está maravilhado, seus olhos mais verdes que nunca; o cabelo castanho balança-se suavemente com a...

      Brisa? Como seria possível, se estamos em um lugar fechado e sem corrente de ar?

      Vindre se aproxima lentamente e estende a pequena estrela para Chris, que faz que vai apanhá-la mas hesita de último momento.

      — Espera, isso é um...?

      — Não enviarei Dianna. — interrompe Vindre. — Suas visões podem ser úteis para encontrar a Doquo, mas dificilmente ele virá atrás dela. Os dons dos dois é que são exatamente o que ele procura, agora que tem Annabely, tenho certeza que virão atrás de vocês.

      Franzo o cenho, sem conseguir entender muito. Chris, por outro lado, parece já estar por dentro de toda a conversa, fixado na bolinha de luz como se cogitasse pegá-la para si.

      — Sabe que não podemos. Temos que encontrar nossos irmãos e a Hellena.

      Então me dou conta, e é como se o mundo despencasse sobre mim. Ele pretende nos enviar de volta. Ao nosso mundo. Uma onda de desespero sobe por minha espinha — voltar era tudo o que eu queria, agora já não. Não posso chegar em casa sem Will.

      — Minha prioridade é proteger o mundo e isso significa proteger vocês — ele solta a bola de luz, que plana por uns instantes antes de começar a crescer gradativamente. — Perdoem-me. Isso nunca esteve em discução.

      A última coisa da qual me lembro é de tentar voltar e depara-me com a porta de madeira do alçapão trancada. Não sei exatamente quando, nem como, mas ficamos presos. Chris e eu nos abraçamos e gritamos, tentando lutar contra a força invisível que nos empurra para dentro do portal contra a nossa vontade. Lembro-me inevitavelmente da casa de madeira abandonada, a primera vez que entrei e fiquei presa misteriosamente. Lembro de Stive, de como ele me tirou de lá, de como me salvou. Talvez aquele fosse o aviso — e eu não devesse voltar. Agora passo por um portal mais uma vez, estou voltando para casa e não precisamente com meus irmãos e todos os outros que vieram comigo.

      Foi a coisa mais estúpida que já fizemos na vida e, ironicamente, custou nossas vidas.

      E, assim como se iniciou nossa aventura, ela termina com a gente mergulhando em um portal.

      Ou, talvez, não tenha terminado.

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