Lealdade

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      Me abaixo bem em tempo de desviar de uma de suas lâminas afiadas, e já levanto preparando a minha jogada. Stive está surpreso demais para agir, mas Hellena, pelo contrário, avança para ela enquanto seus cabelos passam de loiros à brancos. Lanço uma bola de fogo atrás da outra, mas ela desvia de todas com facilidade, rindo de cada golpe. Liam e Demmie se preparam com seus arcos, Larm se apossa de uma espada. Vedir, o mestre em luta corporal, avança para ela com suas técnicas tão eficiente, mas que perto das dela parecem brincadeirinha de criança. A metamorfa é uma grande guerreira, isso é incontestável. Parece leve como uma pluma e veloz como uma flecha, sem contar sua agilidade imensurável. Consegue bloquear cada flecha, desviar de cada rajada de fogo, gelo e água, e sua pele escamosa serve de escudo contra as pancadas das espadas. O que mais me preocupa é que ela ainda está só na defesa; quando decidir atacar, ninguém poderá impedir.

      Desisto de jogar nela o meu poder e semicerro os olhos. Ao que parece, todos ou a maioria já haviam parado de lutar; o último a desistir é Vedir, que só o faz depois de levar uma rasteira e cair estatelado no chão.

      A matamorfa retoma a postura, dando um sorriso triunfal.

      — Desgraçada — ouço Demmie murmurar ao meu lado e vejo de soslaio o momento em que ela abaixa o arco, apontando a seta para o chão. — Daria um doce para saber o que passa naquele cérebro oco.

      A cabeça da criatura esquisita se inclina um pouco ao desviar os olhos para ela.

      — Que besteira — sussurra Liam, ao lado de Demmie. — Eu daria um doce para ver o que tem por baixo daquela cabeleira toda.

      Ouço um estalo e Demmie ralhando com ele, o que seria cômico se não estivéssimos numa situação tão ruim.

      — Por que nos ataca? — Doquo se adianta à frente do grupo, de punhos cerrados. — Pelo que me lembro, fui eu quem tirei sua raça do sofrimento. Fui eu quem dei a vocês a chance de ter uma vida digna, num lugar maravilhoso. Se Vindre não tivesse me banido, concluiria a missão. Sabe disso.

      Ao avistar Doquo, a criatura se curva em uma profunda reverência e assim fica por um longo tempo. Franzo o cenho, constatando que aquilo realmente não faz parte do roteiro. Essa é a parte em que ela tenta, furiosamente, nos matar, não é? Então por que há tanta demonstração de respeito por alguém do nosso grupo?

      — Oh, real Doquo Bouringor, rei de Oliut, Liberty e Hope — diz ela cordialmente, ainda curvada. — Quero que fique ciente de toda a devoção que lhe credito. Serei eternamente grata por tudo o que fizestes, por todo o carinho que tens com seus súditos, e é por isso que minha raça jurou fazer sempre o que lhe trouxesse benefícios.

      Ergo as sobrancelhas, procurando o rosto de Hellena agora. Como imaginei, ela está com aquela expressão de descrença que assume todas as vezes que uma pessoa falsa reclama de falsidade, ou que alguém que ela sabe que quer derrubá-la diz que a adora: A boca entreaberta, o pescoço esticado e as sobrancelhas tão levantadas que parecem querer chegar ao couro cabeludo.

      — Sério isso? — Stive cochicha para mim, finalmente soltando o corte no pescoço. — Primeiro quer matar, e depois idolatra... parece até a Hellena.

      — Fica quieto, coisa laranja — resmunga Hellena, sem abandonar a expressão de perplexidade. — Eu estou ocupada ficando pasma.

      Torno a prestar atenção à metamorfa que se endireita lentamente. Doquo mantém sua postura de superioridade.

      — Se és tão devota a mim, gostaria que me explicasse o que fazia tentando matar alguém do meu sangue.

      Ela alinha os ombros, seu rosto transformando-se em uma carranca.

      — Pensei que soubesse. — diz, com sua voz duplicada. — Meus amigos e eu tomamos conhecimento dos planos de Vindre, e sabemos que ele já descobriu um meio de sacrificar-te. Não poderia, de forma alguma, permitir que seus planos tomassem forma. Ouviu que eles querem teus netos para te matar? O único jeito era matar teus netos e salvar a sua vida.

      Agora, a perplexa sou eu. Quer dizer então que ela estava, o tempo todo, zelando pela proteção de Doquo? Que faria o que fosse preciso para salvar sua vida, ainda que significasse matar sua família? Eu até consigo enxergar algo de bonitinho na atitude, porque sua lealdade ultrapassa todas as barreiras, mas isso realmente chega a ser loucura.

      Doquo não rege, tampouco ela diz qualquer outra coisa, então ambos se estudam pelo que parecem horas. Eles mantêm o rosto livre de expressão e os punhos cerrados. Como dissera Demmie há pouco tempo, eu daria um doce para saber o que passa em suas mentes.

      Após minutos de silêncio profundo, no qual as pessoas se encaram e conversam por intermédio de olhares, o rei Doquo finalmente resolve falar.

      — Se esse é seu conceito de fazer a coisa certa, está equivocada.

      O assombro no rosto da metamorfa me faz quase sentir pena dela.

      — Meus netos significam a minha salvação também — continua ele. — Sem eles, não chegarei a absolutamente lugar algum. Eles podem me destruir, é verdade, mas jamais farão isso. Eles vão me ajudar. Você pode me ajudar também, se quiser.

      Lágrimas verdes soltam-se de seus olhos, enquanto ela abana a cabeça e recua. Está inacreditavelmente magoada, como se ao invés de Doquo tê-la explicado o que estava havendo, ele tivessa a ofendido terrivelmente.

      — Me perdoe, Alteza.

      Desvio o olhar de seu rosto apavorado para suas mãos pendidas molemente aos lados do corpo. Levo um susto ao ver que suas unhas não param de crescer, e agora já devem estar com uns trinta centímetros de comprimento.

      — Desculpe-me — choraminga ela, sua voz soando ainda mais apavorante por conta do choro. O barulho de seus pés arrastando as folhas do chão enquanto recua enche a noite. — Por favor, desculpe. Eu quase... quase...

      — Mas não o fez — ele estende as mãos para ela, finalmente notando o que eu já havia percebido: suas unhas. Ela leva o indicador até a altura do próprio peito, apontando para si. — Olhe, você ainda pode vir conosco, ainda pode me ajudar — ele se precipita para ela, tendo impedi-la. — Não faça nenhuma loucura.

      Suas lágrimas verdes escorrem pelo queixo e pingam na longa unha, manchando-a. Eu duvido que algum dia volte a ver alguém tão arrasado, tão destruído quanto aquela mulher de longos cabelos brancos. Sinto alguém passar o braço pela minha cintura, e percebo que é Hellena. Ela está tão comovida quanto eu.

      Tudo parece acontecer em câmera lenta. Ela dispara a unha — lâmina —, e esta se enterra em seu coração, espirrando sangue verde por todos os lados. Doquo corre em sua direção, amparando-a antes que desmonte no chão. A última coisa que a metamorfa faz antes morrer é abrir um largo sorriso e olhar para Doquo com os olhos amarelos felinos cheios de afeto. E, em seguida, nada.

      Hellena me abraça ainda mais apertado, e eu fecho os olhos com força, escondendo o rosto no seu cabelo. Nunca havia visto a morte tão de pertinho, e pretendo não voltar a vê-la. Sei que jamais esquecerei aquela metamorfa que, apesar de ter tido a intenção de nos matar a princípio, acabara provando que a lealdade ainda existe no mundo.

      Doquo pousa a cabeça dela no chão e se levanta, com as mãos tingidas de verde e a cabeça baixa. Vira-se para nós e passa direto, apanhando sua faca na bainha.

      — Precisamos ir — fala ele com rispidez, esbarrando em Larm ao passar. — Não posso voltar a dormir sabendo que há um metamorfo morto ao meu lado.

      Troco olhares com Hellena e sei exatamente que está tão chocada quando eu. Agora que já não temos sequer um projeto de Dianna, a saudade é ainda maior. Só me resta rezar para que a verdadeira volte algum dia.

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