Birc invade meus pensamentos

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      No outro dia, bem de manhãzinha, me levanto cedo para o tal do treinamento. Assim que saio do quarto, levo um susto com Birc parado à porta com aqueles grandes olhos completamente dourados. Assim tão de perto, percebo que ele é quase uma cabeça menor que eu e é bem mais magro do que pensei em um primeiro momento. Seu macacão cinza está tão folgado que é inevitável lembrar de um Telettubies logo a primeira vista, ainda mais com aquele cabelo verde despenteado apontando em todas as direções. Ele é fofo como uma criança pequena, embora esteja evidente que é mais velho que eu por alguns anos.

      — Você está atrasada. — ele diz com um timbre mais grave, torcendo o nariz de uma forma esquisita.

      — Como assim? Ainda nem está claro direito! — me irrito, batendo o pé como uma criança pirracenta.

      — Exato. — segura meu braço mas eu o puxo bruscamente da mão dele. — Era pra estar acordada antes do dia ameaçar clarear.

      Emburro o rosto. Birc é muito mais inconveniente do que pensei que seria, como um professor chato que quer que tudo seja da sua forma. Relaxo os ombros cansada, percebendo que ele não iria embora a menos que eu fosse com ele.

      — Então me dá um tempo para trocar de roupa. — giro os olhos.

      Entro no quarto fechando a porta atrás de mim e vou até uma cadeira. Sobre ela, se encontram algumas das roupas que Myafa me emprestou. Ela teve de dividir suas roupas com quatro meninas, o que deve ter sido difícil. Visto uma blusinha roxa que cabe perfeitamente em mim e uma jardineira patética cor-de-rosa. Me sinto de volta aos cinco anos de idade, quando minha mãe me enfeitava igual à um poodle rosa.

      Minha mãe. Suspiro com a lembrança dela.

      Saio do quarto já arrumada, mas com os pés descalços. Birc me olha maravilhado e resisto ao impulso de virar-lhe a mão na cara.

      Ele caminha comigo até a tal da sala de treinamento, que fica em um porão. Quando desço as escadas, percebo que todos, inclusive Liam e Amélia, estão lá. O lugar é espaçoso e incrivelmente limpo. Não é arredondado como o resto da casa, mas tem um formato cubico normal, e as cores não são tão chamativas. Está completamente vazio, com exceção das pessoas.

      Avalio cada um dos presentes.

      Dianna está sentada no chão, roendo as unhas; ela é a menos enfeitada dentre todos, vestindo uma blusa verde e shorts amarelos. Hellena parece querer enfiar a cabeça dentro da terra de vergonha, afinal seu vestido com as cores do arco-íris não é lá muito discreto. Todos os meninos estão usando macacões ridículos — que deveriam ser de Birc — e reprimo a vontade de cair na gargalhada ao avistar meu irmão Will e seu macacão amarelo com a figura de um sol sorridente estampado. Ele está dez vezes mais patético que o próprio Birc. Amélia e Liam estão largados em um canto, vestidos ambos de laranja, e parecem esperar o espetáculo começar.

      Não sei que espetáculo.

      Sento-me entre Stive — cujo macacão é vermelho-sangue — e Dianna.

      — Sugiro uma meditação. — Myafa diz, serena como uma brisa de verão. Ela está usando um vestido cor de fogo, e sua cabeleira verde combina perfeitamente com as sandálias da mesma cor.

      — Como assim? — pergunta Stive alarmado, de olhos arregalados.

      — Se concentrem. — explica Birc, que havia passado por mim e ido parar diante de todos, ao lado de sua irmã. Myafa era mais alta que ele por poucos centímetros.

      — Acreditem que são capazes de controlar seus poderes para que eles aflorem. — completa ela. — Birc vai ajudar vocês.

      — Por que ele? — Hellena soa indignada.

      — Porque sou capaz de penetrar sua mente. — ele diz tranquilamente, como se fosse a coisa mais natural do mundo. — E passar informações para ela.

      O observo boquiaberta. Que espécie de habilidade é essa? Embora soe fantasiosa, eu consigo sentir que é verdade e isso me causa calafrios. Por sua vez, Hellena apenas cai na gargalhada, o som ecoando por todo o porão em um volume exagerado. Seu riso vai se perdendo aos poucos quando Birc começa a encará-la com o dourado de seus olhos reluzindo feito puro ouro.

      — Ok — Hellena assente, e posso jurar que o que Birc acaba de fazer é mandar uma mensagem para a mente dela.

Certo, agora estou assustada.

      — Fechem seus olhos. — Myafa diz suavemente.

A voz dela é tão acolhedora que sequer tardamos em obedecê-la.

      — Agora não ousem abri-los. — ela adverte. — Nem espiar.

      Com os olhos fechados, penso em tudo o que me ocorreu até aqui. Nos meus pais, na minha vida, na minha situação de forma geral... E então é como se estivesse dormindo e sonhando. Uma lembrança me vem à cabeça: Eu na barraquinha, naquela noite chuvosa, ouvindo Stive contar a história agarrada à Annabely e Hellena, ambas tremendo de medo das trovoadas. A sombra de Dianna se projeta nas paredes da barraca em cotraste à vela acessa ao seu lado, e a voz de Stive é como um sussurro, como se ele contasse seu segredo mais assombroso. Me sinto envolvida, como no dia em que aquela lembrança acontecera de fato, sentindo a ansiedade sob minha pele crescendo gradativamente. Mas, de repente, alguém entra na barraca todo molhado por conta da chuva, com os cabelos verdes pingando e os olhos inteiramente dourados brilhando. Apesar da escuridão, posso vê-lo claramente e me espanto, recuando.

      Se concentre. Esqueça suas lembranças, Birc diz, puxando Annabely dos meus braços. De repente a lembrança se desintegra, evaporando como fumaça. A última coisa que vejo antes de ser jogada no limbo é o rosto de uma Dianna sorridente, descascando como a pintura de uma casa, quebrando como vidro até se tornar nada. E agora estamos apenas Birc e eu, andando no meio de uma densa escuridão. Só o que vejo dele são seus olhos dourados, flutuando, brilhando como dois sóis.

      Você pode controlar seus poderes? Sua voz surge de todos os lados, ecoando no vazio.

       Continuo caminhando, como se ele fosse uma mera sombra. Isso tudo é como um sonho, não há necessidade que eu me incomode com o que um personagem do sonho me pegunte. Ignorá-lo parece o certo a fazer e eu o faço sem pestanejar.

      Você pode controlar seus poderes? Repete, insistente, mais autoritário que antes.

      — Cala a boca! — esbravejo, sentindo uma onda inexplicável de fúria se acentuar por todo o meu corpo. Meus olhos subitamente ficam marejados e transbordam no segundo seguinte.

      Você é capaz de controlar seus dons? Não é mais uma voz humana. O berro de Birc é como o rugido de uma fera, intimidador e firme, me fazendo estremecer.

      O que começou com uma choradeira se transforma em um pranto sentido, cheio das mais variadas emoções. Medo, raiva, terror. Angústia, pressão. Todo se transforma em lágrimas e desce desenfreado por minhas bochecha, chegando salgado aos meus lábios.

      Silêncio. Paro onde estou, soluçando. Viro-me para seus olhos, parados no meio do nada, fitando-me com a mesma curiosidade inexplicada.

      — Sou.

      Minha voz ecoa, vagando e desaparecendo no ar timidamente. Com toda a adrenalina passando em meu corpo, reúno fôlego ao gritar:

      — Eu posso controlar meus poderes!

      Posso jurar ver um sorriso surgir sob o par de olhos dourados antes de a cena sumir em um estalar de dedos e, em seguida, acordo do transe.

      Sou a única com olhos abertos. Myafa, Liam e Amélia me olham assustados, como se de repente antenas tivessem surgido em minha cabeça. Em busca de auxílio, olho para Birc, me frustrando ao vê-lo ocupado com Dianna. Eu preciso de explicações, entender o que foi aquilo e o porquê de eu estar tão apavorada. Pestanejo, sentindo os olhos tão molhados quando a testa suada.

      Não entendendo a razão para tanto espanto, baixo os olhos para meus dedos que estão dormentes e me assusto com o que vejo.

      Minhas mãos pegam fogo.

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