Converso com uma garota esquisita

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      Depois de passar mais de 24:00 horas desacordada, à noite o sono se recusa a vir. Enquanto olho o teto, que é azul com algumas formas geométricas desenhadas, tento digerir tudo que aconteceu até aqui. Penso em meus pais. Se não conseguirmos voltar, o que acontecerá com eles? Afinal, perder todos os filhos de uma vez só deve causar um impacto terrível na vida deles, assim como meus tio e tia, que também passarão pela mesma coisa. Apesar de odiar Liam e seus irmãos, não deixo de pensar e Vanessa, mãe deles, que sofrerá como os outros.

      Reviro da cama, ciente que não poderei pregar os olhos essa noite. Então me levanto. Minha cabeça ainda dói, mas nada que eu não possa suportar. Atravesso o quarto, envolta em pensamentos, mas quando chego a porta, hesito.

      Foi exatamente assim a última noite que passei em casa. Minha insônia me fez parar aqui.

      Giro a maçaneta e abro a porta, que faz um ruído quase inaudível. Coloco a cabeça para fora do quarto e olho de um lado à outro, para me certificar de que não há ninguém acordado. Parece que não há. Saio, pés descalços e a mesma camisola que estava quando vim para cá, caminho pelo longo corredor. Não conheço nada na casa, mas ela não deve ser grande o suficiente para que me perca.

      Enquanto ando, um pensamento invade minha cabeça, e me assusto com ele. E se for minha culpa de estarmos aqui? Talvez eu pudesse ter me obrigado a dormir, o que evitaria que Hellena acordasse e Will tivesse aquela ideia louca de ir à rua. Talvez eu pudesse votar contra a saída noturna. Talvez eu pudesse ter batido o pé e insistido que não entraria naquela casa abandonada. Talvez pudesse ter continuado segurando Luize em um abraço, evitando, assim, que ela também se fosse... talvez...

      Balanço a cabeça a fim de me livrar do pensamento.

      — Não foi culpa sua, Emma. — tento me convencer, embora saiba que isso é uma tolice. — Foi culpa dos estúpidos dos seus irmãos.

      Então me dou conta que já não estou no corredor, mas sim em uma sala pouco iluminada, onde o único sinal de luz é a janela transparente.

      — Falando sozinha? — uma voz feminina me surpreende, e não é nenhuma das minhas primas. Olho em volta assustada, procurando a dona da voz, mas ela não dá o ar de sua graça. — Me procurando?

      Então ela entra em meu campo de visão. É uma moça muito bonita, cujo rosto em formato oval apresenta altas maçãs angulosas, e o nariz é pequeno e empinado de uma forma perfeita... mas há algo de estranho nela. Não se trata de seus cabelos verdes com cachos volumosos, nem de seu sorriso intimidador. Suas roupas se resumem a uma camisa longa de mangas de cor beje que desce até seus joelhos, tornando impossível saber se ela está usando algum shorts por baixo ou qualquer outra coisa que seja.

      — Quem é você? — pergunto, receosa.

      — Acho que eu que deveria perguntar isso, já que está na minha casa. — Nessa hora, percebo com um sobressalto sua estranheza. Se trata de seus olhos que são completamente prateados. Quando digo completamente, quero dizer o olho todo, sem nenhuma parte branca. — Mas tudo bem. Vou deixar a seu critério me dizer seu nome.

      — Emilia. — disparo, recuando — Mas me chamam de Emma, e eu prefiro assim.

      Ela abafa uma risada.

      — Nome engraçado, o seu. — ao dizer isso, seus olhos esquisitos tremeluzem e ficam normais, continuando prateados, mas agora com parte branca, como olhos de pessoas normais. — Acho que você não deve ser desse país, não é mesmo? Me chamo Myafa.

      — Não sou. — sinto meu corpo relaxar um pouco, mais aliviada por seus olhos terem ficado normais. — Sabe, hm, Myafa, eu queria te perguntar uma coisa, só espero que não se chateie.

      Ela sorri mais.

      — Nada pode me chatear, manda ver.

      — Eh... como você faz isso com os olhos? — sei que é uma pergunta estúpida, mas eu tenho mesmo muita curiosidade em saber.

      — O quê? — ela parece não entender a princípio, Mas, depois, seu sorriso se torna ainda maior e mais animado, do mesmo jeito que o de Will quando tinha alguma ideia mirabolante. — Isso aqui?

      Seus olhos ficam inteiramente prateados e depois voltam ao normal rapidamente.

      — É... — concordo timidamente — esse negócio mesmo.

      — Todos aqui podem fazer isso. — ela ri, em seguida se inclinando como se fosse contar um segredo — Mas os mais bizarros mesmo são os de olhos negros, tem que ver!

      Eu sorrio, me limitando a imaginar. Tenho certeza de que ficaria assustada ao ver alguém com olhos inteiramente negros, só a ideia me causa calafrios. Avalio bem a garota a minha frente, sem nem saber por que estou falando com ela, e muito menos por que isso me deixa feliz.

      — Eu... preciso tomar um banho agora e...

      Paro ao ver a expressão dela de quem não entende.

      — Você quer ir ao lago uma hora dessas? — Myafa parece apavorada com a ideia; seus olhos arregalados se assemelham a duas moedas de prata — Um Kirq pode te atacar, sabia?

      Agora ela conseguiu me confundir.

      — Quê? — pergunto com as sobrancelhas franzidas.

      Myafa revira os olhos e sorri.

      — Desculpa, esqueci que você não é desse país. — e bate na própria testa. — Kirqs são predadores. Geralmente são desse tamanho. — ela põe a mão a uma altura que deveria ser o tamanho de uma criança de cinco anos. — Papai já matou um monte. A carne deles é uma delícia.

      Torço o nariz imaginando-me comendo uma carne desse bicho aí.

      — Mas... vocês tomam banho no lago? — pergunto.— Não tem chuveiro?

      Ela me olha como se eu tivesse delirando, pestanejando uma sequência de vezes com o sorriso oscilando entre o que é muito divertido e o que é muito confuso.

      — Como é um chuveiro?

      — Ué, é um troço que sai água. — digo como se fosse obvio.

      — Legal. — ela desvia o olhar rapidamente, da forma que uma pessoa faz quando não quer que as demais descubram que ela não entendeu absolutamente nada. — Espero ver um, qualquer dia. — e então dá um longo bocejo. — Agora, acho que vou dormir.

      Depois que ela sai, fico parada no meio do nada. Olho de um lado à outro e decido voltar para a cama. Essa menina é, no mínimo, maluca. E quando volto para o quarto e deito-me na cama, imagino se ela está pensando a mesma coisa sobre mim.

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