Depois de toda aquela história contada por Arismir, o velho maluco, ninguém ousa pronunciar uma só palavra durante o jantar. Estamos os sete em volta da mesa, Arismir e Birc comem sentados nas poltronas. Há uma cadeira vaga ao meu lado, que Myafa ocupa assim que termina de nos servir.
Sinceramente, aquela é a janta mais esquisita que já comi em toda minha vida, mas minha cabeça está tão envolta em pensamentos que nem percebo o que estou comendo até que a colher — que pode servir como faca também, devido à sua extremidade reta e afiada capaz cortar alimentos sólidos — chegue à minha boca. Quando o gosto doce muito próximo à baunilha toma conta de minha língua, automaticamente desço o olhar para o prato. O que estou comendo é uma espécie de geleia de mato, algo assim. Aquilo é bem estranho ao meu paladar, já que se trata de um jantar e sabores doces, como baunilha, não deveriam fazer parte do cardápio. Ao lado há uma fatia de alguma coisa que poderia ser presunto. Ergo os olhos para os outros, que estão tão surpresos quanto eu, e depois baixo novamente o olhar, interessada em experimentar a tal fatia. Corto-a com a ponta da "colher" e levo-a lentamente a boca em seguida. Arregalo os olhos quase imediatamente sentindo minha boca queimar. Parece até que estou comendo pimenta! Imediatamente e em um ato desesperado, começo a abanar a boca com a mão — como se isso fosse fazer alguma diferença — chamando a atenção de todos. Myafa se levanta afobada e busca um galão de água, colocando um pouco em uma vasília não muito funda que eles usam como copo.
Ela parece desapontada.
O efeito é o mesmo para meus irmãos, Dianna, Liam e Amélia. Apenas Hellena parece ter gostado, lambendo as pontas dos dedos e os lábios ocasionalmente para não deixar passar nada. No fim, o galão d'água está vazio e Myafa visivelmente magoada.
— Eu achei que gostariam de Kirq. — ela se joga na cadeira, derrotada. — Preparei eles com carinho... até peguei do estoque de caça de meu pai.
— Eu gostei. — diz Hellena abocanhando mais um pedaço como se fosse um leão comendo um filhotinho indefeso. Seus lábios estão mais vermelhos e inchados que o normal, o que não parece incomodá-la. Myafa lhe lança um sorrisinho fraco.
— Esquece, Myafa. — Birc diz, sem paciência. Ele tinha acabado de comer e seu prato repousa sobre suas pernas sem qualquer indício de que algo estivera ali alguma vez. Me pergunto se ele lambeu o prato ou algo parecido. — Dá logo a notícia.
— Notícia? — entro em estado de alerta, embora minha voz soe mais abafada do que eu gostaria. Minha boca ainda arde, e é como se o jantar se esforçasse para voltar pela minha garganta.
— Meu pai pediu para que eu treinasse vocês. — Myafa diz, apontando para a poltrona vaga. Não sei como, mas Arismir saiu dali e eu nem percebi, o que, novamente, me causa surpresa. É a segunda vez que ele faz algo assim: ora se materializando feito um fantasma, ora evaporando como névoa pelo ar. Ele é incomum de um jeito instigante.
— O que quer dizer com "treinar"? — A voz de Stive me arranca dos devaneios, trazendo minha atenção de volta à Myafa.
— Ajudar vocês a descobrirem seus dons. — explica ela com simplicidade. — Mas vou dar um aviso: É possível que alguns de vocês não possuam dom nenhum, já que são filhos de nativos daqui com nativos do mundo de lá.
— Mas... posso perguntar uma coisa? — Hellena diz um pouco hesitante. É estranho que ela pense antes de falar, e mais estranho ainda que peça permissão para fazê-lo. Todos a olhamos com curiosidade esperando alguma ironia, mas ela apenas sorri minimamente. —Se tivermos poderes poderemos fazer aquele treco maneiro com os olhos?
Vejo Dianna girando os olhos para o que ela disse.
— Naturalmente. — a resposta veio de Birc, que parece o único a ver aquela pergunta como algo relevante. — Mas isso exige muita prática e esforço.
— Ih, então esquece. — Hellena cruza os braços.
É a Hellena, penso. Não dá para esperar algo muito profundo dela.
Myafa se levanta endireitando a saia de seu vestido laranja neon, que está completamente amarrotada. Seu sorriso cativa a cada um de nós que acabamos retribuindo com a mesma vivacidade na medida em que ela começa a se afastar.
— Eu espero vocês amanhã na sala de treino. — diz, tão luminosa quanto o sol pela manhã. Penso se aquela seria a melhor hora para declarar que eu não faço a menor ideia de onde fica esse lugar. — Por favor, não demorem. Devemos começar bem cedo, já que terão de embarcar em uma missão perigosíssima.
Myafa transpassa a porta, deixando uma onda esquisita de tensão pairando no ar com suas últimas palavras. Missão perigosíssima. Não perigosa, perigosíssima. Nós nos entreolhamos desafiando quem seria o primeiro a falar depois daquilo e, para minha surpresa, essa pessoa é Liam.
— Acho que Amélia e eu ficaremos por aqui mesmo. — Foi o que ele disse, me fazendo girar os olhos tão forte que as órbitas doem. Se fosse qualquer outro a dizer aquilo, eu certamente não teria me incomodado... o problema é que partira da boca dele: Liam. O desprezível Liam.
— Bom pra vocês. — retruca Hellena, recostada no encosto da cadeira de braços cruzados. Mechas de seu cabelo meio loiro/meio azul invade sua blusa pelo decote. — Pelo menos nós vamos nos divertir nessa tal de missão.
— Ou morrer. — acrescenta Will, encolhendo os ombros, com os cotovelos apoiados no tampo da mesa despreocupadamente. — De qualquer forma, o dia está lindo.
— Pra mim tanto faz ir ou não. — Dianna declara ao fim, parecendo ter pensado muito antes de tomar aquela decisão. Ela é a mais séria entre nós, seus olhos ocultam a vontade desesperadora de encontrar os irmãos, ainda que pusesse sua própria vida em risco... mas ela não sería egoísta ao ponto cobrar que fizéssimos o mesmo. — De qualquer forma, estamos condenados a ficar presos para sempre.
— Talvez não. — digo, incerta se acredito em minhas próprias palavras. — Se for realmente verdade o que o velho disse, nós bem que poderíamos procurar esse ex-rei e pedir para ele conjurar um portal.
— Se for verdade o que Arismir disse — Stive diz, disperso. É como se ele estivesse alheio a tudo, formando uma teoria complexa em sua cabeça pouco inteligente. — Nós, como netos do rei, poderíamos conjurar o portal sozinhos.
Desvio o olhar para Birc, que tenta guardar cada palavra dita por nós com um sorriso mínimo e um brilho diferente nos olhos dourados, quase como se formulasse ideias a cada informação coletada. E se Stive tiver razão? E se, depois do devido treinamento, pudermos conjurar um portal sozinhos? Balanço a cabeça, convicta de que já estou ficando maluca por acreditar nessa história. Se fosse verdade, minha mãe já teria comentado isso comigo. Não pode ser... ou pode? O fato é que vim parar num lugar desconhecido, com pessoas de olhos esquisitos, numa casa completamente fora do normal, então, a essa altura, acho que tudo é possível.
Me levanto e saio vagarosamente da cozinha, recebendo o olhar de todos os outros.

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O país secreto.
FantasyEmma é uma jovem que gosta de fazer coisas diferentes, que fogem do cotidiano e quase sempre espera viver grandes aventuras com os irmãos e primos. Mas em uma tarde que parecia normal, Emma, seus irmãos, primos e amigos- Não necessariamente amigos...