A verdade

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      Naquele dia mais tarde, Will acordou. Ele está tão perdido quanto eu. Não, está mais perdido que eu. Quando ele viu Myafa pela primeira vez, com aqueles olhos inteiramente prateados, gritou como uma menininha — Hellena me fez jurar que não esqueceria aquilo nunca. Stive e o babaca do Liam, pelo contrario, ficam babando toda vez que veem ela. Dianna até mesmo colocou um balde aos pés de Stive naquela tarde mesmo, dizendo que seria muito constrangedor ter que limpar a baba dele do chão, então que babasse no balde.

      Agora de noite, como Will já está de pé, Arismir nos reuniu na sala — que é bem ampla e redonda, com três poltronas, de modo que sete de nós tivemos de nos acomodar no tapete, que, desconfio eu, é feito da pele de algum animal que não conheço. Talvez seja o tal do Kirq que Myafa havia me dito.

      Arismir está sentado na poltrona do meio com Birc à sua esquerda. Myafa insistiu para que um de nós se sentasse em seu lugar, mas todos negamos, alegando estarmos confortáveis onde estamos.

      Estou sentada entre Will e Dianna, o que não é uma escolha inteligente — Will sempre tem um comentário sarcástico na ponta da língua, e adora pontuar coisas desnecessárias que vão me fazer desconcentrar. Não contei o número de vezes que já tive que calá-lo com uma cotovelada nas costelas.

      Que mais não fosse, Arismir pigarreia antes de dar início à história, dando tempo de nos ajeitarmos.

      — Primeiro, eu gostaria de perguntar como vieram parar aqui. — seu tom é tão sombrio que chega a dar medo.

      — Curiosidade, senhor.- diz Amélia em algum lugar à minha esquerda. — Coincidência.

      — Não, minha jovem. — ele balança a cabeça. — Coincidências não existem.

      Ele está me assustando falando desse jeito. Será que ele quer me matar como, afirmara Myafa, ele faz com Kirqs? Um arrepio percorre minha espinha com a ideia. Engolido pela penumbra, a única coisa que se destaca são seus olhos prateados cintilando à luz da lua como olhos de vidro.

      — Ele quer saber onde o portal apareceu para vocês. — simplifica Birc, parecendo minúsculo em uma poltrona tão alta.

      — Numa casa velha, por quê? — diz Hellena, rápido demais.

      No ato de olhar para ela, flagro ao meu irmão mais velho, na ponta da fileira. A julgar pela forma que ele olha para fora através da janela constantemente, eu diria que ele já está considerando a ideia de fugir.

      Birc e Myafa ficam boquiabertos com a resposta de Hellena.

      — O velho portal... — Murmura Birc com sua voz mais áspera que o usual.

      — Não, o portal não é velho.- corrige Will, embora eu soubesse que ele não estava sendo burro, apenas debochado.- A casa é.

      — Agora fala logo a droga da história, que eu não tenho a noite inteira. — Hellena diz mal humorada.

      Arismir, acostumado a fingir que Hellena não existe, descarta seu comentário descaradamente.

      — Olha, só não se apavorem.- Diz Birc, o que me faz apavorar instantaneamente. Quando dizem isso, não quer dizer que você está correndo perigo, afinal?

      — Há muitos anos atrás havia um rei que mandava em tudo isso aqui. — A voz do velho é neutra, como a de um bom contador de histórias. Ele se levanta e caminha a passos lentos até a janela, parando ao lado da mesma com os braços cruzados atrás do corpo enquanto olha para fora. — Dotado de poderes especiais, como todos os moradores desse pais, porém mais forte. Muito mais. O lugar era lindo, divino! As casas viviam em paz absoluta.

      — Hm, senhor — Will o interrompe. Arregalo os olhos para ele com um sorriso que dizia "estou louca para te dar uma cotovelada, então cale a boca."- Se todos do país tem poderes, então qual é o de vocês três?

      Ouço Dianna suspirar exasperada. Sim, Dianna. Eu sei. Compartilho do mesmo sentimento.

      — Isso não vem ao caso. — Diz Arismir, o que era obvio, afim de continuar a história. — O rei daqui era forte, indestrutível. Mas nem tanto assim. Sua esposa, mãe de seus filhos, não teve pena dele nem das crianças quando se aliou ao principal rival do rei. Ele era forte também, e com a aliança com a esposa do rei, se tornou mais forte que ele. O rei fez o máximo para proteger as crianças das mãos dele, mas só houve uma solução: Mandá-las para o mundo de onde vocês vieram. Ele conjurou o portal no porão de sua casa, pois tinha forças suficientes para isso, e as mandou para longe.

      Um silêncio mórbido paira no cômodo; todos estamos entorpecidos, envoltos na história, com muitas dúvidas girando sobre a cabeça. É presumível; quando se ouve uma história pela metade, com tantas pontas soltas e finais indefinidos, a curiosidade começa a incomodar e as perguntas surgem em um instante.

      — E... o rei morreu? — Pergunta Dianna. Sua voz parece um erro no meio de todo aquele silêncio.

      — E é aí onde está o perigo. Ele não morreu. — Arismir se vira para nós; parte de si engolida pela escuridão, enquanto a outra parte oferecia uma visão crua de seu olhar profundo e rosto sério. — Ele se isolou de todos para se fortalecer e tomar seu lugar no reino.

      Minha cabeça está girando. O que nós temos a ver com essa história? Um rei... filhos mandados para o nosso mundo...

      Sinto um arrepio percorrer minha espinha. E se...

      — Senhor, quantos filhos eram? — pergunto desconfiada, temendo qual seria a resposta.

      — Não sei. Há boatos que sejam três, outros que sejam dois, mas não se sabe ao certo. — algo em sua expressão denuncia que ele sabe exatamente no que estou pensando.

      Me levanto um pouco nervosa, com as mãos unidas a frente do corpo, alarmando aos demais. Dianna, que parece ter sido a primeira a seguir minha linha de raciocínio, levanta-se em seguida.

      — E... qual era o nome do rei?- Pergunta ela.

      — Doquo. — Ao dizer o nome, o olhar de Arismir encontra o meu, me causando arrepios. — Doquo Bouringor.

      Meu coração dispara. Há uma comoção, uma onda de burburinhos se ergue como uma cortina de fumaça. As vozes se misturam e se agitam, enquanto, uma a uma, as pessoas vão se levantando e indagando umas às outras como isso poderia ser possível. A voz esganiçada de Will se sobressai às demais quando ele pergunta:

      — O que isso quer dizer?!

      — Quer dizer — Arismir sobe o tom de sua voz até estar autoritária o bastante para cessar os murmúrios. — que os filhos do rei são seus pais. Vocês são primos, não é mesmo? Quer dizer que o principal rival do rei, Vindre, o que tomou seu trono e agora governa, deixando nosso país em ruínas, chamou vocês aqui, podem ver? — Semicerra os olhos. Sinto mãos me puxando e me abraçando, mas estou atônita demais para processar de quem se trata. — Ele quer que vocês, netos do rei, dotados de uma magia tremenda, se unam a ele!

      — Eu quero ir embora. — choraminga Stive, agarrado à Dianna como se ela fosse seu porto seguro.

      — Ele está com seus primos e irmãos!

      Até Myafa e Birc parecem apavorados, imóveis, apenas absorvendo toda aquela informação.

      Mas após a comoção inicial, o silêncio reina de novo. O velho se acalma um pouco e torna a se sentar em sua poltrona, nos analisando como se fossemos muito instigantes. Percebo uma mão em meu pulso —Hellena — e que Will está quase tão paralizado quanto eu, sem reação. Liam havia se materializado ao meu lado antes que eu notasse, tomando o lugar que antes pertencia à Dianna.

      — O que vamos fazer? — pergunta Dianna, desafinada de susto.

      — Primeiro descubram seu dom. — diz o velho surpreendentemente calmo. — Depois começarão a jornada para resgatar seus parentes.

      Escuto muitas pessoas choramingarem e praguejarem uma sequência de vezes e quase faço mesmo, sendo impedida apenas pela surpresa aterradora.

      — Se preparem, meus jovens. — ele sorri estranhamente. — A aventura começou.

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