Demorou vários minutos até cair a fixa de que Annabely está realmente aqui, nos encarando com seus olhos negros expressivos e sustentando um ar de autoconfiança absoluta. Quando eu finalmente me convenço de que é ela, fico chocada o bastante para sentir a necessidade de me sentar e refletir arduamente sobre isso — o que, naturalmente, seria impossível já que estou frente a frente com o maior vilão.
Vindre sorri com simpatia, apoiando suas mãos ossudas nos ombros de minha pequena prima.
— Annabely é uma menina valiosa - Ele diz, casualmente. — E especialmente inteligente.
Vindre suspira, dando-nos as costas e deixando-nos a encarar a garotinha como se ela fosse uma espécie nova de inseto. Ele gira pelo centro da sala, largando-se em uma poltrona, e então dirige-se à sua esposa:
— Maly, traga biscoitos e chá, por favor — desvia o olhar para nós, e em seus olhos estreitos há um quê de mistério — Preciso ter uma conversinha com nossas convidadas.
É impressionante a calma em sua voz, considerando que há uma guerra acontecendo em seu jardim. Eu ficaria com raiva, com muita raiva mesmo, mas estou ocupada ficando perplexa. Annabely segura minha mão e a de Hellena, e nos guia para o centro da sala, pedindo discretamente para que nos sentemos. É claro que teríamos resistido ao máximo, se pudessemos ao menos raciocinar.
Poucos minutos depois, Maly volta com uma bandeja com uma chaleira redonda engraçadinha, quatro canecas de plástico e um pratinho de biscoitos cor-de-rosa quadrados. Hellena e eu, que já estamos acostumadas com as coisas estranhas do lugar, aceitamos o chá e comemos os biscoitos numa boa — ué, eu estou com fome! E além de tudo, o aroma dos biscoitos é irresistível, tanto quanto seu sabor.
Quando Vindre termina o primeiro biscoito, Maly vai embora e Annabely finalmente se senta, se inicia a parte chata de toda a história — a conversa.
— Vocês são Heline e Emma, suponho.
— Hellena — ela corrige, com a boca cheia. — E sim, somos nós.
Uma faísca se acende nos olhos de Vindre.
— Ah, sim — ele diz. — Estive ansioso pelo momento em que as conheceria. Ouvi que são as únicas dominadoras de Gelo e Fogo desde Doquo e seus filhos. Ligeiramente fascinante.
Annabely permanece inexpressiva, olhando de mim à Hellena como se tivesse algo incrível para falar, mas não pudesse. Vindre parece gentil; ele nos deu biscoitos e chá — desse jeito vai ser realmente complicado matá-lo. Hellena, depois de se empanturrar, reclina-se na poltrona e solta um longo e demorado suspiro.
— Estou me sentindo uma porca prenha — ela comenta, meio sonolenta. — Melhor resumir essa história, sr. Vilão.
— Vilão — Vindre ecoa, com uma risadinha. — Realmente impressionante o seu conceito, srta. Bouringor. Minha esposa deve ter te explicado alguma coisa sobre vilania, certamente. Muitas vezes, nós nos confundimos. Deixa eu esclarecer: alguém que nasceu com o dom de realizar todos os desejos das pessoas, a menos que mexa com espaço e tempo, não pode ser considerado um vilão, pode?
Me pego pensando sobre do que ele realmente está falando; como assim, realizar desejos? Isso chega a ser um dom, por acaso? De qualquer forma, o assunto me deixa tão curiosa, que me inclino com os antebraços sobre as coxas para ouví-lo melhor.
— Desejos? Do que exatamente está falando?
Ele abre um sorriso, como se tivesse chegado ao ponto pretendido.
— Isso Annabely vai explicar. — Seus dedos correm pelo rabo de cavalo da minha prima e ela não mostra nenhuma reação. — Vá, Anna. Diga a eles.
Annabely se levanta, obediente. Seu vestido rosa está impecável, e ela parece ter saído do banho há pouquíssimo tempo, mas nada pode fazer com que sua expressão se torne menos amarga. Ela atravessa a sala, abrindo as portas duplas de vidro e caminhando para a sacada, com Hellena e eu em seu encalço. Aqui fora, o vento está morno e aconchegante, o dia está lindo e quente, todavia a guerra está cada vez mais intensa. Apoio as mãos no parapeito da sacada, tentando enxergar com clareza o que acontece lá embaixo; vejo corpos estirados no chão sobre piscinas de sangue, vejo pessoas sanguinolentas se arrastando para longe, vejo o brilho das espadas chocando-se umas com as outras e tentando ferir o oponente. É impossível saber quem é quem, no entanto, não posso descartar a possibilidade de que alguns daqueles mortos podem ser meus amigos e minha família. Tudo dentro de mim se comprime, e eu me sinto imprensada, sufocada. Fecho os olhos, virando de costas para não presenciar tudo isso.
— Você está vendo, Emma? — a voz infantil de Annabely, que eu não ouvia há tanto tempo, me tira do transe. — Eles vão morrer. E você também vai morrer.
Fecho os olhos, sentindo as lágrimas rolarem livremente pelo meu rosto.
— Todos vocês — continua. — Se não se aliarem a Vindre. Ele pode dar a vocês o que quiserem. Vocês ainda vão morar aqui... só precisam aceitar isso.
— Olha aqui, sua pirralhinha — pronuncia-se Hellena, me fazendo arregalar os olhos na mesma hora. — Se você pensa que engana Hellena Maria Bouringor, está enganadíssima. Eu conheço a Bely e sei que ela jamais falaria alguma coisa assim.
Annabely se alarma e, por um instante, parece a mesma garotinha de onze anos que eu conhecia como minha prima. Mas isso só dura poucos segundos, porque logo sua máscara de seriedade a domina de novo.
— Hellena — ela sussurra. — Você deve achar que foi fácil para mim passar tanto tempo presa naquela cela, sem o mínimo vislumbre da luz do dia. Eu me lembro de quando Luize morreu — Ela faz um gesto na direção de Hellena. — E eu fiquei dias sem comer nada. Minha irmã foi levada embora, e eu nunca mais a vi. Meu irmão era minha base; ele me dava forças quando eu não tinha de onde tirar. E eu vi cada pontinha de sanidade ser arrancada de Júnior, até ele parecer um dependente químico. Acha que está sendo fácil para mim?
Hellena e eu abrimos a boca para responder, contudo, Annabely nos interrompe.
— Não, meninas — ela diz, ríspida. — Não estava sendo fácil. Mas Vindre apereceu, e ele me fez a proposta irrecusável de me juntar a ele. Há uma razão para tudo estar acontecendo, uma razão para estarmos presos e para Vindre estar no poder. Um vilão nem sempre é mau e o mau pode não ser visto como vilão.
A frase de Birc. Olho imediatamente para Hellena, ao ponto de ver seu rosto se contorcer. Depois de dizer uma coisa dessas, é obvio que Hellena a acusaria de tudo quanto é coisa, isso se não voasse no seu pescoço.
— Sua filha da mãe! — troveja. — Você sabe o que está dizendo? É o Vindre, caramba! Foi por causa dele que a Lu morreu, e por causa dele que a gente está viajando que nem condenados para lutar! Coloca isso nessa sua cabeça desmiolada, filhinha.
Enquanto Hellena dá uma bronca daquelas em Annabely, meus pensamentos vagueiam para mais além. o vilão nem sempre é mau, e o mau nem sempre é visto como um vilão. A frase se acende tão nitidamente em meu cérebro, que eu quase cambaleio. E se for a Anna? E se ela for uma vilã?
Me lembro dela, de quando morávamos em nosso mundo. Ela era apenas uma criança inocente, que gostava de atenção e de carinho. Eu lia para ela dormir às vezes, e ela sempre me dava presentes, como um limão com pedaços de gravetos simbolizando pernas. Ela sempre me abraçava quando me via, seja em uma visita, ou em um supermercado. Como ela pode ser a vilã?
Olhando-a agora, eu vejo uma criança séria e madura demais para sua idade, que fala como uma advogada e age como uma mulher adulta. Engulo em seco, chegando a conclusão de que, vendo-a agora, ela bem que seria capaz disso.
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O país secreto.
FantasyEmma é uma jovem que gosta de fazer coisas diferentes, que fogem do cotidiano e quase sempre espera viver grandes aventuras com os irmãos e primos. Mas em uma tarde que parecia normal, Emma, seus irmãos, primos e amigos- Não necessariamente amigos...