Quarenta e dois

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Alana

A mesa estava toda preparada com o jantar, mas o deus estava irritado demais para comer. Fazia dez minutos que ele olhava para um ponto fixo na parede. Não observava nada em específico, apenas tentava ainda digerir a notícia: Ele tinha uma companheira. Tantos anos se passaram. Tanto tempo passou desde que tinha perdido as esperanças de que um dia teria alguém para chamar de sua. Já tinha visto inúmeros deuses ao longo dos séculos acharem amor e se aposentarem. Isto é, terem filhos e lentamente ir perdendo seus poderes, lentamente começando a envelhecer. Por muito tempo refletiu se quando encontrasse sua companheira estaria pronto para a aposentadoria, mas aquilo parecia um absurdo agora que. Aquilo não era para Tiordan Crane. Ele nunca se cansava do seu trabalho. Todos os dias os sonhos mais loucos surgiam em sua dimensão e o davam ideias novas. Mesmo assim seria bom ter alguém ao seu lado. Tiordan não gostava da companhia de ninguém exceto seus animais de estimação, então seria bom conversar de vez em quando. Seria bom se ela não fosse totalmente incapaz de lhe dar o que procurava.

Eu o observo respirar fundo e fechar os olhos com força. Dou a volta na mesa para olhar mais de perto, mas uma energia poderosa me impede. Eu estava em um sonho, estava ali apenas para testemunhar algo que já tinha acontecido. Tenho que me lembrar de manter distância, eu não podia ser pega ali. Se eu olhasse atentamente conseguia sentir suas emoções, angústias e frustrações. Em sua mente, ele conseguia visualizar o rosto da companheira. Sua pele clara que parecia ser tão macia, os olhos amendoados e calorosos, o cabelo escuro e comprido. O deus abre os olhos e levanta furioso derrubando a mesa. Me afasto num pulo, meu coração começa a bater descompassado. Talvez estivesse tão cego de ódio que não percebeu que eu estava bem ali.

Era tarde, ele estava condenado. Durante algum tempo tinha se comunicado com deuses de uma escola na dimensão humana. A diretora era a deusa da magia e seu companheiro um deus de asas de penas. Talvez eles pudessem ajudar, talvez... Sem pensar direito, ele começa a escrever.

"Prezados senhor e senhora..."

E o que? Do que ele precisava? Um feitiço que fazia esquecer a memória?

"Receio que haja algum engano quanto ao meu laço de companheirismo. A mulher que apareceu em meus sonhos não é digna da minha posição, não tenho outra escolha senão rejeitá-la". Crane suspira. A última palavra havia sido difícil escrever. Ele já estava perdendo o controle sobre si mesmo. Estava cedendo aos seus encantos. Não. Ele era o deus mais antigo, o mais poderoso. Ele não se deixaria vencer por uma loba Shifter inferior. Sem ter certeza do que escreveu, ele finaliza a carta e a envia com magia. "Tomara que façam alguma coisa", ele torce, mas nem sequer os conhecia. Ele estava desesperado e não queria encontrar com ela. Tinha que ter um jeito de não sentir nada por ela.

Crane começa a caminhar, andando até a varanda com vista para a praia. Eu o sigo, ciente de todos os sentimentos que o afligiam. O céu estrelado, a briza silenciosa e o infinito e vazio mundo dos sonhos o faziam se sentir solitário. Olhando para baixo, pôde ver alguns de seus estimados pets. Muitos outros animais viviam em sua dimensão, mas estes ficavam mais próximos de sua casa. O deus sabia que eram ótimos guarda costas, os crocodilos são um dos animais que mais aparecem em pesadelos. Se os humanos os temiam, não teriam coragem de continuar dormindo. "Até esses animais acasalam, até eles tem companhia", o deus começa a pensar em mais coisas do que eu sou capaz de acompanhar. Ainda observando, um pensamento mais sombrio se forma em sua mente. Aqueles animais não eram capazes de sentir amor ou qualquer outro tipo de emoção que os deixariam fracos e vulneráveis. O deus os invejou por um segundo. Mas depois teve uma ideia.

Os crocodilos são os animais que mais assombram os pensamentos humanos, e também nos pesadelos de sua própria espécie. Ele tinha acesso aos sonhos de todos. Inclusive os dos animais. Um sonho em particular havia chamado sua atenção na noite passada. Um pequeno filhote que tinha medo de ser devorado pelos gigantes predadores. Esse ser minúsculo tinha sido o último a nascer de sua ninhada, era o mais fraco. Ele não tinha qualquer chance de sobrevivência. Teria no máximo mais algumas semanas de vida até que a mãe o abandonasse a própria sorte. O deus evapora em uma nuvem. Ele entra nos sonhos do filhote que agora estava dormindo com os irmãos. Eu respiro fundo e sigo Riordan Crane ainda mais fundo no mundo dos sonhos. Minha mente vira um labirinto, um mero espectro naquele turbilhão de memórias e só quando não me sinto mais eu mesma tenho o pressentimento de que talvez não fora uma ideia vir tão longe.

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