Emma Farrah
Cinco anos atrás
A porta do elevador se abre no último andar do glorioso prédio da Farrah, a maior empresa do ramo de construção e imobiliário de Miami. Saio dele, mantenho as mãos no bolso e sigo para a minha sala, após mais um contrato milionário fechado. Eu trouxe essa empresa para o século XXI. Tornei-a ágil, única, não há mais competição. Matei todos os tubarões do mercado ao nosso redor e agora o foco era expandir para o país, quem sabe, para a América Latina, o que seria uma aventura perigosa, já que a LEÃO&DOURADO domina absoluta tudo do México para baixo no mapa. Mas preciso ser ousada, sei que sou capaz. Sonhar pequeno e sonhar grande dá no mesmo, então, o que me custa tornar a Farrah maior, mais influente e poderosa do que a lendária L&D? Antes de chegar à minha sala presidencial, Lety, minha secretária, murmura:
— O seu pai veio vê-ls, senhora. Ela avisa sem fazer alardes e mantém o rosto abaixado, mexendo nos papeis. Não tenho tempo de agradecer. Entro no espaçoso escritório e o vejo sentado em minha cadeira.
— Aproveitando a vista, eu suponho. Desabotoo o terno e ando até ele. James Farrah, o meu pai, é muitas coisas. Um homem com sede de poder, certamente; um controlador nato, é claro; e alguém que não sabe contornar assuntos ou abordar temas com calma, isso é nítido. Ele gosta de ir direto ao ponto.
— Por quanto tempo você acha que podia esconder isso de mim? Ele rosna.
— Esconder o quê? Que sou mais talentosa do que pensei? Fecho o punho e o deslizo para cima e para baixo no terno, me gabando.
— Ou que eu poderia levar essa empresa familiar para outro patamar? Estamos expandindo, pai! Somos a droga do Império Romano, nesse momento! Não parece que é sobre esse assunto que iremos tratar e isso me desestimula. Não iremos comemorar os louros da vitória?
— Eu pensei que você me daria algum orgulho, mas...
— Do que o senhor está falando? Pouso a mão na mesa de mogno escuro e o encaro, preocupada.
— Você pensou mesmo que poderia mentir para mim? Que poderia esconder seus segredinhos e me olhar, dia e noite, com a cara lavada? Você é uma decepção, Emma.
— Isso é algum tipo de brincadeira? Procuro as câmeras. Só pode ser uma daquelas pegadinhas, não é possível.
— Graças a Deus, você tem um pai que sabe dar cabo dos assuntos. Então está resolvido.
— Podemos ir direto ao ponto?
— Você não pode ser mãe! — Ele diz colérico, explode sem avisar.
— Eu aqui, tentando construir laços, praticamente estou te dando de bandeja para a filha do governador ou até me dê tempo para conseguir uma mulher adequada, filha de político, de gente que pode contribuir com a nossa causa. Sem palavras, é como eu fico. Não pensei que conseguiria esconder isso para sempre, mas... como ele descobriu?
— Você tem duas opções. Ele retorna ao estado normal, passa a mão nos cabelos, asseando-os para trás e olha para a janela.
— Aborto ou destruir a vida dessa desgraçada.
— Pai...
— Não há problemas em ter bastardos. Você acha que não tive os meus, porra? Todo homem tem segredos para guardar e é bom que a maioria deles esteja a sete palmos do chão. Olhe só para você, Emma. Jovem, promissora, inteligente, uma boa arguidora. É bonita! De boa família!
— Eu não acho que... Tento construir um argumento, mas ele não me permite.
— A porra da filha de uma professora, Emma? Que futuro uma mulher dessas pode te dar? Vai construir o seu Império Romano com o quê? A plebe? Água e óleo não se misturam.
— Como o senhor descobriu?
— Eu tenho os meus modos e não serei questionado. Ele é resoluto.
— Não me faça tomar tudo o que eu te dei! Você não existe sem mim! Você é a minha filha, a minha herdeira e eu te criei para ser a dona do trono. Mas o que você vai? Procriar com gentezinha. Meu Deus... onde errei?
— Pai.
— Não me dirija a palavra! Ele diz.
— A não ser que tenha escolhido entre o aborto ou destruir a vida dessa desgraçada. Não terei netos
que fujam dos altos padrões que temos, Emma! Pense bem! Engravidasse a porra da filha do presidente! Do governador! De um bilionário! Mas não a de uma professorazinha! Ele vocifera.
— É a sua palavra final? Tento segurar a emoção. Sou boa nisso. Mas não o suficiente quando o meu pai diz:
— Se tomar a decisão errada, você não será mais a minha filha. E eu vou tomar tudo o que te dei e irei destruir a sua vida. Isso doeu. Mais do que eu poderia imaginar que palavras pudessem
doer.
— Você é o rosto do Império, filha. Você é a Farrah. Você é a CEO que comanda tudo isso e eu estou orgulhoso do seu trabalho. Ele me acaricia com as palavras agora, mas sei que em seguida terei seu golpe de misericórdia:
— Mas terá de escolher entre ter a merda desse bastardo ou continuar a ser o dona do Império. Ele respira fundo como se isso pudesse apagar seus gritos e acusações, suas ordens insanas e suas palavras que acabam comigo.
— Essa é a minha palavra final. Ele diz calmo, como se tudo estivesse bem agora.
Atualmente
Com o abafador de som na orelha, Henry volta a ficar equilibrado e quase que de imediato abstrai que Vincent está ali, que o odeia com força e odeia ainda mais aquela música. Assim como metade daquelas crianças também odeiam. Tem sido desafiador ser mãe desse rapazinho. E eu não sou de fugir de desafios, tenho buscado ser a melhor mãe do mundo que ele poderia ter. Crianças como Henry demoram até apresentar interesse por alguma coisa. Ele não é como qualquer garoto que vê uma bola ou algo brilhante e imediatamente fica encantado. Ele se encanta por coisas específicas, assim como todas essas crianças. Henry tem muito interesse pelas formigas. Assim como seus coleguinhas tem interesses pela tabela periódica, por dinossauros ou carrinhos... Vincent tem interesse nessa música. Em específico. Ele não para de escutá-la. E isso atormenta todo mundo. O que nós, como pais de crianças assim tentamos fazer é tentar aproximá-los, mostrar desde cedo que existem outras crianças como eles, para que no futuro ou em algum momento eles possam desabafar, ajudar ou criar alguma empatia pelos coleguinhas. Henry até consegue, com alguns. Com Vincent não, ele o odeia.
— Agora está melhor, filho? Me ajoelho ao lado dele e vejo se os abafadores estão bem colocados e se está tudo bem. Henry toca o vidro do aquário de formigas e acompanha com os olhos os trajetos que elas fazem.
— Filho? Continuo ao lado dele, encarando-o. Mas Henry me ignora. Às vezes é assim, é como se eu não estivesse ali. No início eu pensava que era desinteressante. Que nem mesmo o meu filho me dava bola, não ligava para a minha presença... Henry “fugiu” de casa várias vezes. Não porque ele é rebelde ou não se sinta confortável... ele só não sentia que pertencia. Pertencer é uma coisa importante e bem difícil. E crianças como Henry às vezes dissociam completamente identidades ou importâncias e se concentram no que lhes desperta interesse. E esse menino é o meu maior interesse. Eu sinto, dentro de mim, que de alguma forma eu pertenço a ele. A casa não seria a mesma sem Henry, a minha vida não seria a mesma sem ele e quem eu sou e me tornei não existiria sem ele. Pode ser, sim, que para Henry eu não esteja aqui, agora. Mas para mim, ele sempre estará aqui e eu sempre me dedicarei a
ser a melhor para ele. Infelizmente eu sou tudo o que ele tem, então preciso me esforçar de verdade.
— Ainda estou aqui. Beijo o ombro dele.
— E sempre que precisar de mim, eu vou vir e vamos resolver tudo, absolutamente tudo juntos. Não sei quantas vezes já disse isso, mas repito.Direi quantas vezes forem suficientes até que ele se lembre ou aprenda. Henry vira o rosto devagar para mim e aparenta surpresa ao perceber que ainda estou aqui. O surto de raiva passou, ele já está mais tranquilo e já pode retornar para o que estava fazendo.
E eu vou estar ao lado dele, antes do surto, no surto, depois do surto. Enquanto eu estiver viva.
— Toma carinho. Ele passa a palma da mão aberta no meu nariz umas duas vezes e sai andando para a cozinha.
Regina Mills
Emma abaixa o volume da televisão, o que faz com que o tal menino Vincent fique agitado. Daí ela desaparece pelo corredor por alguns segundos e retorna com um celular e fones de ouvido, coloca no menino e desliga a TV. O menino continua olhando para o eletrodoméstico desligado, mas continua se divertindo.
— Uau. É tudo o que consigo dizer quando Emma está de volta ao meu lado.
— O que foi? Ela se diverte.
— Imagino que... todos eles têm gostos únicos e algumas vezes entram em choque, como o garoto que gosta de ouvir o Baby Shark.
— Pois é. Ela assente.
— Desculpe-me se eu estiver sendo indelicada ou fazendo as perguntas erradas, mas... não te cansa? Eu já teria surtado, de verdade. Você foi bem inteligente de ter colocado a música nos fones de ouvido para ele, acho que foi isso que fez, certo? Emma respira demoradamente e me olha da mesma forma, parece que está apreciando meu rosto ou algo assim.
— Cansa, é claro. Ela diz.
— Principalmente depois de umas cinquenta quartas-feiras o Vincent ficar horas e horas seguidas ouvindo a música favorita dele. Mas quer saber?
— Hum.
— Eu também tenho os meus gostos estranhos. E você deve ter os seus. Mas o Henry me ensinou algo muito precioso. Algo que se eu aprendi na escola ou em qualquer outro lugar, não dei valor como dei ao que ele me ensinou.
— E o que ele te ensinou? Pergunto, não consigo conter a curiosidade.
— Um momento. Ela pede.
— Vamos ver se ele está disposto a nos ensinar. Emma chama Henry, mas ele não vem. Então ele pega o aquário de formigas de onde está e traz para perto de mim, coloca em cima da mesa. O pequeno instantaneamente vem e fica entre nós, apreensivo, ao que parece, para tentar entender o que a mãe quer tirando o aquário do lugar onde ele deveria estar.
— Henry. Ela mexe nos abafadores de ouvido e os afasta um pouco.
— Conta pra mamãe, por que você gosta de formigas?
— Mas eu já te falei! Ele cruza os braços, aparentemente ofendido.
— Eu sei, eu sei que você me falou e eu lembro de cada palavra que você disse. Emma sorri de um modo angelical que é diferente de todos os sorrisos que trocamos até agora. Parece que a sua criança interior está conversando com o filho e isso é fascinante.
— Mas a Regina... Ela segura a minha mão e me puxa para perto.
— Ela quer saber porque você gosta de formigas. A Regina gosta muito de formigas. Henry se vira para mim, de supetão.
— Gosta?
— É claro que gosto.Me agacho para encará-lo. Não sei se tocá-lo é uma boa ideia, então me contenho a abrir o meu melhor sorriso.
— Fomigas. Ele começa assim, enche bem os peitos para começar a falar, parece que tem muito a me dizer.
— As fomigas vivem em colônias, assim ó. Ele faz o sinal de “muito” com os dedinhos.
— Elas são fortes e sabem se comunicar sem precisar fazer barulho. Que menino inteligente! No início era monossilábico, agora está me dando uma aula!
— As fomigas são fortes e conseguem carregar coisas muito mais pesadas que elas mesmas. Ele abre as duas mãos e as joga para os lados.
— E o mais importante! Ele aponta o indicador para mim.
— Estou ansiosa para ouvir. Me aproximo dele.
— Quando uma fomiga encontra algo que é muito, muito, muito pesado de carregar... ela chama as outras amigas, as fomigas da colônia. Elas fazem pontes, com os próprios corpos. E se juntam para carregar qualquer peso, porque elas sabem que se uma fomiga não for forte para suportar... Ele faz uma pausa.
— Ela tem toda a colônia para ajudar. Não sei se sou boba ou o quê, mas... acho que tem um olho nas
minhas lágrimas. Parada, do jeito em que estou, continuo a encará-lo, enquanto sinto uma lágrima escorrer do meu olho. Esse menino talvez não tenha ideia do que ele acabou de me dizer... do subjetivo da coisa...é tão precioso que... não sei se um dia ele, na sua condição, irá alcançar o que isso significa.
Henry é muito mais inteligente do que aparenta ser. Talvez seja mais inteligente que muitos adultos que conheci. E com essa simplicidade e esse jeito de gostar das formigas, ele dá uma lição muito importante.
— Regina gosta de fomigas. Henry diz para a mãe. Emma agradece ao filho e me olha, como se um dia seus olhos tivessem brilhado, como os meus. E as lágrimas tivessem sido suas. E a sensação de que aquele menino era um pequeno gênio, em sua simplicidade, fosse antiga e verdadeira.
— Você me fez gostar muito mais das fomigas agora, Henry. Digo a ele, emocionada. Tenho sua atenção por cinco segundos inteiros. Ele não esboça nenhum sorriso ou qualquer outro tipo de reação.
Vê a mãe pegar o aquário para devolver ao lugar de origem e vira o corpo nessa direção e sai andando do seu jeito caricato, como se não tivesse me dito nada. Mas ele me disse tudo.

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Show de vizinha
HumorRegina Mills sempre corre atrás do que quer. Ela batalhou muito para ter a sua pequena agência de eventos em Miami e um relacionamento de dez anos com Robin Hood, coisas das quais ela se orgulha muito. Até que após um incrível final de semana com se...