29. A vez em que um jovem lobo iniciou um treinamento arriscado

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Muitas semanas se passaram desde aquele dia em que vô Chico me mostrou a pintura de Xolotl na caverna. Não sei se era culpa da neve, do meu treinamento ou simplesmente por não haver quase nada acontecendo na vila dos Lobos Anciãos; o fato é que, após repetir a mesma rotina incessantemente, sem variar, isolado, sem acesso à internet ou telefone, eu apenas perdi a noção do tempo e nem sabia mais em que dia da semana ou em qual mês estávamos. Era como se o relógio funcionasse de uma maneira completamente diferente por ali.

Benjamin havia melhorado um pouco, mas seu corpo ainda estava bastante fraco e sua saúde continuava debilitada. A ferida em seu peito estava cicatrizando bem lentamente e ainda sangrava vez ou outra, mas ele já não tinha mais febre. Meu irmão passava a maior parte do tempo na cama, quase sempre dormindo, e levantava apenas para ir ao banheiro ou tomar banho, sempre com a ajuda do meu avô ou de Maria. Ele também comia bem pouco, mas, sempre que estava acordado, me tranquilizava e dizia para que eu não me preocupasse com ele e me concentrasse em meu treinamento. Admito que vê-lo tão fragilizado não era nada agradável, mas, ao menos, tentava me contentar com o fato de ele estar consciente, se alimentando todos os dias e conversando, ainda que bem pouco.

Os dias eram sempre iguais. Eu acordava bem cedo, antes do sol nascer, e ajudava meu avô em algumas rotinas de manutenção, como remover a neve das passagens ou cortar lenha para alimentar o fogo. Vez ou outra, nós atravessávamos a caverna que levava ao parque e nos encontrávamos com os homens raposa, para pegar os mantimentos e remédios que eles traziam com certa regularidade para abastecer a vila dos Anciãos. Sempre que eu os via pessoalmente, fazia questão de perguntar se não havia aparecido ninguém por ali, seguindo os rastros meus e do meu irmão, mas a resposta era sempre negativa. Aparentemente, tínhamos mesmo conseguido despistar Enoe e seus capangas, mas, ainda assim, eu nunca baixava a guarda e sempre me mantinha em alerta aonde quer que eu fosse.

Normalmente, as minhas tarefas no vilarejo ocupavam quase toda a manhã. Após o almoço, eu tinha cerca de uma hora para descansar. E, então, eu seguia para a caverna de Xolotl e passava o resto do dia treinando. Pela noite, quando eu retornava, eu me sentava em frente à lareira com o meu avô e conversávamos sobre o quanto eu tinha avançado naquele dia e o que eu estava sentindo. Antes que você se pergunte, o tal treinamento nada mais era do que eu me transformar em lobo e ir pulando de um pilar até o outro, fazendo o possível para me equilibrar e não despencar dentro do precipício. Isso, por si só, já seria uma tarefa arriscada demais, mas não parava por aí. Aquele lugar não era um lugar comum. Aquele lugar era assombrado.

Vô Chico dizia que muitos dos espíritos dos antigos guerreiros anciãos ainda vagavam por lá. Já eu tinha a opinião de que, seja o que fosse que habitasse aquele precipício, estava bem longe de ser o fantasma de um nobre guerreiro. As coisas que vagavam por ali eram maléficas, disso eu tinha certeza. Eram como demônios que ficavam à espreita, te testando e fazendo uso das suas maiores fraquezas, apenas esperando o momento em que você não resistiria, daria um passo em falso e cairia diretamente nos braços deles. Meu avô tinha mesmo mencionado que Xolotl às vezes era descrito como um deus que tinha passagem livre no inferno, então não seria nenhuma surpresa descobrir que ele havia deixado as portas abertas em uma de suas viagens e que todos os demônios libertos tinham vindo até ali, para me atormentar.

Quase sempre acontecia do mesmo jeito. Eu me aproximava da beira do precipício, me transformava em lobo e pulava no primeiro pilar. Depois disso, parava por alguns instantes, respirava fundo, me concentrava no segundo pilar e, quando estava pronto, pulava para ele. Bastava chegar ali, porém, que as aparições começavam. Num primeiro momento, eram apenas vultos negros, que passavam depressa pelos cantos dos meus olhos e desapareciam sem que eu conseguisse fixar minha visão neles. Assim que eu avançava para o terceiro pilar, começavam as vozes, sussurros, risos, assobios. Obviamente, eu ignorava tudo aquilo e seguia em frente, focado. Mas, assim que eu pisava no quarto pilar, meu martírio começava de fato.

O Clube da Lua e a Noite Sem Fim (Livro 3 - em andamento)Onde histórias criam vida. Descubra agora