30. A vez em que um jovem lobo atravessou um precipício

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O lado de lá do precipício não era muito diferente da paisagem que eu já havia me acostumado. O chão permanecia coberto de neve e, um pouco mais adiante, havia uma pequena caverna, levando para dentro da montanha. Eu continuava em minha forma de lobisomem, mas, agora, não sentia minhas energias se esgotando rapidamente, como da última vez em que eu me transformara. As sombras do precipício haviam desaparecido, assim como as visões de Davi e dos dentes-de-leão. Pensei estar sozinho, até o momento em que notei um vulto passando ao meu lado. Quando olhei naquela direção, vi que era meu avô que ali estava, ainda transformado em lobo.

Então você também conseguiu atravessar os pilares? — perguntei, por meio da nossa conexão mental, surpreso com a presença dele ali.

Fiz isso pela primeira vez muitos anos atrás — ele respondeu, distraído, como se fosse algo sem importância. — Mas o que importa, agora, é que você conseguiu, meu filho.

E o que tem de tão especial nesse lugar? — indaguei, sem entender porque precisara me esforçar tanto para chegar até ali. — Só vejo neve...

Vamos até a caverna. Há mais coisas que eu tenho que te contar.

Segui meu avô até a pequena abertura na rocha. Do lado de dentro, notei outra pintura na parede. Dessa vez, eu reconheci de imediato a cena retratada. Era a Deusa Lua, no céu, estendendo a mão para o seu amado Lobo Negro, na terra.

Depois que a Dádiva Noturna de Xolotl foi concedida, a descendência dos lobos mexicanos prosperou e cresceu enormemente, em número e em força — relatou meu avô, contemplando a imagem. — Seguindo a orientação de Xolotl, aqueles bravos guerreiros partiram com suas tropas, explorando e conquistando todos os territórios abaixo do México. Foi assim que passaram pela América Central e acabaram chegando aqui, na América do Sul.

O exército de Xolotl... Era esse o exército dos Lobos Anciãos que o Benjamin tava procurando, não era? — perguntei.

Sim, exatamente. Mas esse nome, "Lobos Anciãos", só surgiu muito tempo depois — vô Chico explicou. — Quando os adoradores de Xolotl finalmente chegaram nesta região, num dos pontos mais ao sul do continente, perceberam que já não tinham mais para onde ir. Eles já haviam percorrido todos os cantos da América Latina. Então acabaram ficando por aqui mesmo.

E o que aconteceu depois disso?

O resto da história você já sabe. Logo vieram os colonizadores europeus; novos seres mágicos também chegaram por aqui, como os vampiros, por exemplo; os lobos foram encontrando outros propósitos e já não fazia muito sentido manter um exército daquele tamanho. Sem novas terras para desbravar e sem a necessidade constante de batalha, o culto a Xolotl foi enfraquecendo e a Dádiva Noturna passou a ser uma habilidade cada vez mais rara dentre a nossa espécie, até atingir um status de lenda — explicou ele. — Praticamente ninguém mais acreditava que esse tipo de transformação era mesmo possível. Mas aí está você, para provar o contrário.

E o que a gente tá fazendo aqui então? — eu quis saber, frustrado. — Se não tem mais exército nenhum, qual o objetivo desse treinamento tão terrível??

Você precisava mostrar aos deuses que estava pronto e era digno de chegar até aqui por conta própria, meu filho. Você sozinho será o seu próprio exército, e ele será mais do que suficiente — vô Chico respondeu, com toda a paciência do mundo.

Não sei qual a serventia de um exército de um homem só... — desabafei, num rompante de sinceridade.

Não vou deixar você sair daqui de mãos vazias, não se preocupe — ele me consolou. Os Guerreiros Anciãos podem não mais existir, mas nem tudo se perdeu, Ian. Há um tesouro guardado nessa caverna. Ele acompanha os lobos há milhares de anos, desde o começo da nossa História. Observe bem a pintura. O que você vê nela?

O Clube da Lua e a Noite Sem Fim (Livro 3 - em andamento)Onde histórias criam vida. Descubra agora