Prologo ~

3.9K 278 23
                                    

  A mochila era grande demais, já a garota pequena e desajeitada tentando descoordenadamente equilibra-la nas costas enquanto as pesadas lentes redondas a frente dos olhos embasavam com o suor do rosto. Ela corria em disparada com o terceiro sinal do colégio indicando o inicio do intervalo dos alunos da tarde, o simples fato de esbarrar com qualquer um deles por acidente a assustava completamente.

Atravessou o corredor e seguiu empurrando as grandes portas cinzas de ferro.

_Já são três da tarde, princesa. Perdeu a hora na biblioteca de novo foi? – a voz doce do senhor de idade lhe roubou um sorriso.

_Desculpa vovô, já estou indo pra casa. Não vou preocupar a mamãe. – Ela impulsionou a pesada mochila pra cima dos ombros estreitos.

_Não por isso, pequena. Deixe a mochila, eu a levo depois. Não precisa carregar tanto peso.

_Não, não, vovô. Chego em casa antes de doer de verdade. – ela disse já seguindo em disparada pelo jardim de grama baixa da frente do colégio.

_Cuidado ao atravessar a rua! – ela ouviu a ultima frase antes de se perder em outra correria em direção a sua casa.

 O vento cantava ao ouvido da garota de tranças pesadas e ela corria com o único e simples objetivo de não perder mais tempo na rua sabendo que a qualquer momento seu desenho favorito estaria começando na tv da sala. Ela sempre gostou de como garotas poderiam lutar contra o mal em roupas coloridas de marinheiras.

 Talvez a falta de atenção ou o terreno irregular a traíram, seus pés se embolaram entre cadarços desamarrados e ela foi de encontro ao chão tão instantaneamente que só percebeu a queda quando sentiu o gosto de terra na boca. O zíper aberto da mochila espalhou os livros a sua frente misturados pela grama.

_não, não, não! – ela parecia pegar pequenos e preciosos pedaços de vida e os verificava como se pudesse limpar qualquer sujeira que tivesse nas páginas. – Não... Ava, sua tonta! – ela começou a guarda-los outra vez com cuidado ao se certificar que estavam seguros, limpos e inteiros.

_Eu não vou entregar! Pode me bater de novo, eu não tô nem ai! – um som seco e doloroso acompanhado de um gemido de dor vinham do canto esquerdo de sua visão. Agora risos baixinhos e mais gemidos de dor. Talvez três pessoas, ou quatro.

 Ava engatinhou até a árvore se escondendo e se esgueirando pra entender o que era aquilo, o que estava acontecendo. Ela prendeu a respiração e encarou com meio rosto a cena a adiante; eram dois garotos grandes demais pra quarta série segurando um garoto franzino de cabelos escuros, se curvando pra encolher a barriga, enquanto um quarto andava em círculos em frente a eles feliz demais para demonstrar que estava no comando da situação.

_Sua mãe não te ensinou a dividir as suas coisas, seu bostinha? – o garoto de cabelos escuros levantou a cabeça o encarando. As costas tensas e as pernas fracas.

_Vá se ferrar, eu não vou te entregar. – eles riram outra vez, os três em sinfonia. – Filho da puta.

_ Ah, abre a mochila desse boca suja. – o menor se debateu e lutou como um animal selvagem tentando proteger um tesouro precioso, chutes no ar, gritos e ponta pés. O coração de Ava parecia bater dentro da boca, o sangue agitado nas veias. O menor gritou ao ver o objeto nas mãos do garoto mais alto. – Isso tudo por uma fita cassete? Você é o filho da puta aqui, moleque.

 Outro soco foi dado por ele e o menino cuspiu mais um pouco no chão. Ava não pensou só agiu, cambaleando soltou a mochila nos pês do tronco da árvore e um galho que estava no chão foi sua "arma". Ela correu a frente gritando atraindo a atenção de todos eles. "Ei!"

_Solta ele! Solta ele agora! – a voz fina se misturando com o medo e a ansiedade começando a fazer as suas mãos suarem e a testa molhar. – Solta ele! – Um último alerta nervoso.

 Os três maiores despontaram em risos grandiosos e observavam a garota quase sem acreditar naquilo. Ela estremeceu, sentiu os ossos doerem com o medo, mas não recuou quando notou que o liquido que o menino havia cuspido era possivelmente sangue. Eles soltaram o corpo do garoto que caiu de joelhos.

_Olha só Pernalonga, você arranjou uma namoradinha. Quem diria? – os risos prosseguiram ainda na mira do galho fino que Ava segurava. – Perfeito! Agora temos dois lanches pra comer na hora do intervalo. Vamos, a gente tem uma fita inteira do Ramones pra ouvir.

 Eles saíram descontraídos se empurrando na direção movimentada atrás da curva a direita, deixando o menino no chão com um braço apertando o estomago dolorido. Ava esperou uma distancia segura e correu até o menino, ela não sabia porque e nem o que fazer, mas precisava de alguma forma o manter de pé outra vez.

_Você está bem? – ela se ajoelhou tentando verificar os olhos da cabeça baixa e rosto frustrado. Ele levou alguns minutos consideráveis pra erguer o rosto e cuspir outra vez ao lado livre deles. Os olhos cinzentos como fumaça. Ava nunca tinha visto aquela cor em olhos humanos, isso a fez lembrar de algumas descrições em livros que tinha lido tantas vezes, aquelas que os escritores não eram capazes de descrever com clareza suficiente a singularidade. Ela entendeu naquele momento o motivo, e engoliu em seco.

 O garoto puxou a mochila pra si mesmo e não se preocupou em fechar o zíper quando a jogou nas costas. Ficou de pé observando a menina sentada a sua frente.

_Porque você fez isso? – ele apertou o estomago tossindo um pouco e encarando a direção em que eles tinham saído. – não era pra ter se metido.

_Mas eles, eles... você tava apanhando. – o que ele estava dizendo? Se ela não tivesse interferido agora ele agora ainda estaria apanhando, muito provavelmente.

_E isso não era da sua conta. Não pedi sua ajuda, quatro olhos. – ele deu dois passos mancando um pouco. O peito da garota se encheu de raiva, "mas que ingrato!"

_Da próxima vez eu vou deixar eles te batendo até anoitecer! E boa sorte pra algum de seus amigos te acharem pra te ajudar. – ela se levantou sobressaltada se preparando pra sair também.

_Eu não tenho amigos. – ele disse enquanto seguia o caminho que os meninos mais velhos tinham feito alguns minutos antes.

 Ava bufou sentindo muita raiva, cruzou os braços e saiu batendo os pés na grama até a arvore pra pegar outra vez seus livros e mochila. A cabeça em um turbilhão de pensamentos enquanto tirava os fios de cabelo emaranhado da frente do rosto e limpava os óculos suados. "garoto idiota!" "Mas que burro, da próxima vez eu... eu..." Ela engoliu em seco quando jogou a pesada mochila nas costas outra vez. "Eu... eu..." ela não encontrou palavras que descrevessem.

 Porque mesmo que o garoto que mancava agora distante de seus olhos estivesse em apuros novamente, mesmo que ele fosse um completo arrogante e teimoso, mesmo que fosse tão solitário quanto ela... Ela sabia que não conseguiria deixa-lo passando apuros novamente. Não se pudesse evitar.  

A Melhor parte de mim.Onde histórias criam vida. Descubra agora