Capítulo 27 - A Minha parte em Você.

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Era a quarta vez só naquela semana em que Ash estava lavando os fundos da oficina. Não que a higiene recém aprimorada fosse um problema, na verdade não era. O problema era sua mente que não conseguia ou não podia parar um minuto se quer de lhe pregar peças. Ele estava tentando... O mantra se repetindo na cabeça em looping.

"Não pensar, não sentir. Não pensar, não sentir."

Mas a porra do dia uma hora acabava, a porra do trabalho uma hora acabava, e a porra do silêncio chegava e isso era o próprio demônio batendo em sua porta, insistente como um religioso fervoroso ou um vendedor aplicado. Ash puxou a onda preta de água com sabão e o barulho do rodo de madeira ecoou por sua mente e oficina vazia.

Ele parou e apoio o braço cansado contra a parede, respirando um pouco ofegante.
Quarenta e sete dias.

Porra...
Quanto em horas aquilo deveria dar? Ele nunca tinha passado tanto tempo sem falar com ela. Sem nem ao menos um emoji estupido de cocô ou nenhuma palavra solta sem sentido, nenhum "pau". Nada. Era como se eles literalmente não tivessem se conhecido nunca e o luto não era um assunto fácil de lidar. Apertou os olhos e suspirou procurando voltar ao trabalho pra terminar antes das...

O celular estridente tocou na bancada de madeira o fazendo congelar a espinha e pular no lugar. Odiou estar tão sensível e agradeceu por estar sozinho. Foi até o aparelho com pouco vontade e calando a voz no seu subconsciente tentando acender a esperança de que pudesse ser ela. Ele não reconheceu o número. Será que ela poderia ter mudado de...
Ele sibilou xingamentos e atendeu com o coração idiota protestando no peito.

A voz suave da atendente do outro lado da linha lhe lembrando do pagamento mensal da internet fez o corpo de Ash relaxar. Ele agendou pro próximo dia útil e terminou a ligação quando ela desligou desejando um bom final de dia. Ele olhou pro celular. Se perguntou que merda estava fazendo, e até onde mais ele iria mergulhar naquela foça maldita que ele mesmo tinha se colocado por vontade própria. A memória o traindo. Os detalhes dela voltando a sua mente, os olhos, os dedos enquanto emaranhava o cabelo no topo da cabeça, a forma que se atrapalhava pra explicar algo quando estava nervosa ou o jeito que movia o lábio quando tentava esconder um sorriso... a sua boca, o gosto dos lábios dela.

"Porra..." – ele apertou os olhos. Respirou fundo observando ainda o celular, a boca seca. A visão periférica quase que iluminando sua moto que tomava alguns dos raios de sol do meio da tarde. Ele repensou, sopesou e mordeu o lábio inferior agora.
E num rompante de coragem discou rápido.
Esperou ansioso as cinco chamadas e simplesmente soltou.

_Oi... oi. É, você... é. – ele engoliu em seco, segundos pra organizar os pensamentos enquanto os olhos cinzentos dançavam pelo local sem rumo certo. – Eu... posso ir até ai? Acho que preciso... – ele engoliu em seco. – Ok. Eu chego logo.

Desligou a chamada, as mãos suando frio enquanto mordia uma pelinha ressecada da boca. Ok. Ele não ia desfazer aquilo, foda-se. Se virou soltando o rodo no lugar e saiu tirando as botas de borracha. O seu banho foi rápido, não pensou bem no que vestir, apenas o fez. As pesadas botas pretas de combate, a jaqueta dos Ramones e as chaves. Olhou pro celular antes de sair, suspirou e o deixou sobre a mesa. Desceu as escadas com presa, habilidoso em uma dança ensaiada colocou a moto na calçada, trancou as portas e montou nela dando a partida em direção ao sol que quase se punha no horizonte.

***

As pedrinhas da estrada de terra começaram a chicotear sua bota e ele se lembrou de porque sempre as usava. Talvez simplesmente não tivesse esquecido dos detalhes enfim. Desceu a pequena ladeira de entrada e seguiu para frente do chalé. Um longo chapéu de palha claro se agitou em meio a um cercadinho de madeiras baixas e aparentemente frágeis, ela veio animada com um sorriso largo tirando as luvas de jardinagem. Observou ele estacionar, descer da moto e tirar o capacete. Seus olhos percorreram o corpo conhecido do filho e seu coração apertou, mas Lilian manteve um sorriso firme.

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