Ash cutucava agora alguns grãos de arroz enquanto recostava na cadeira de madeira, as pernas esticadas em baixo da mesa completamente relaxadas, pouco dormentes. Eles riam enquanto as coisas pareciam passar em câmera lenta na visão dele. A mãe a cabeceira da mesa contava histórias da infância dele como se não tivesse reclamado o tempo todo em tantas delas enquanto ele o pai simplesmente queria brincar o tempo todo. Ele certamente se lembrava daquelas coisas com outra visão. Ela sorria animada ainda secando algumas lágrimas de risos intensos contando como ele colou a pasta de projetos de arquitetura dela com tinta verde e amarela pra fazer bandeirinhas pra ele o pai espalharem por todo o sitio. O velho acabado parecia se divertir na mesma medida, parecia gostar de ouvir ela e tinha a mania insistentemente chata de tocar o braço e a mão de Lilian de frase em frase. Ele beijou a mão dela a mesa e Ash se remexeu inquieto coçando a cabeça e suspirou.
Ava o observou enquanto bebia um pouco do suco de uva agora. Ela também ria, também contava história em que ela mesma tantas vezes participara. Como quando defendeu Ash porque quiseram roubar a fita dos Ramones e como isso a fez se tornar a Super Ava pro "Tio Gê" depois disso. Ash fixou os olhos nela e a mente flutuou até a memória perdida. A fita que ele achou jogada ao chão do quarto dos pais quando entrou pra segurar os braços do pai em uma das crises e como ele tentava se bater com tanta força, em como os braços e pernas estavam machucados e cortados. Ash apertou os olhos, afastou os detalhes... a fita. Isso importava, a melhor parte sempre. O final do dia, em que o pai lhe encontrou na varanda, tantos curativos e remédios depois. A fita em suas mãos calejadas e a forma em que a lhe deu, a forma com que lhe passou aquele tesouro mágico. Aquele pedaço dele... o pedaço bom. O sorriso mesmo quebrado, e o pedido de desculpas no abraço apertado. Ash tentou não pensar, tentou não ver mas parecia que cada palavra o lembrava dele, o trazia de volta dos mortos. Ele cutucou três vezes o arroz que rolava pra lá e pra cá no prato sujo.
_Isso foi hilário! – Lilian ria ainda agora. – Ele deve ter passado quase dois meses com o cabelo cortado na frente na altura da testa. Eu não sei porque mas aquela mecha nunca mais pareceu crescer de volta, levou uma eternidade.
_Eu queria tanto ter visto isso! Ele deve ter ficado uma gracinha de cabelo torto. – Ava tentou sorrir pra ele, mas sorriu sozinha, Ash não estava verdadeiramente ali, estava perdido na própria mente.
_Ele realmente parecia ter presença. – Carlos disse sorrindo, parecendo curtir mesmo as histórias que ouvia. – Parecia ser um homem intenso e interessante... hilário.
_hilário. – Ash falou baixinho em meio aos comentários seguintes que foram se calando. Ele não ergueu os olhos pras pessoas da mesa. – Hilário... Ele era mesmo hilário.
Lilian controlava a respiração ainda e engoliu o restante do Suco, Ava sentiu o corpo ficar tenso, ela conhecia aqueles olhos.
_Sabe o que era hilário mesmo, cara? – ele disse rindo sem humor. – Era hilário como ela sempre estava infeliz e reclamando. Era hilário como nada do que ele fazia estava realmente bom, o celeiro, o concerto da escada dos fundos ou da porta do banheiro. Talvez eu mesmo. A música que sempre a atrapalhava estudar ou trabalhar, ou a forma que a gente sempre estava "gritando demais" – ele usou os dedos pra enfatizar aspas invisíveis. – Era realmente hilário. Hilário...
_Ash... – Ava tentou sussurrar seu nome e puxar sua atenção mas Ash ainda estava perdido, mergulhado em si mesmo, em seus demônios.
_Era hilária a depressão e o pânico do papai... as crises pesadas. Como sempre foi um problema e como a Lilian sempre tentou mascarar essa porra de todo mundo. Era hilário como as vezes eu ouvia as brigas deles pelos remédios encontrados pela casa, a forma que eu os via vivendo no mesmo espaço muitas vezes sem se falar. Ah, muito hilário. ...Aquele lugar em que você estaciona o seu Bel Air vermelho 56, onde ficava o galpão do meu pai. Onde o cara hilário trabalhava ou tentava trabalhar com o que gostava quando tinha tempo, ou quando podia... Era hilário. Foi Hilário como eu vi o meu pai deixar de comer, deixar de querer tomar banho ou simplesmente parar de existir. – Ash se apoiou na mesa agora, ignorando completamente as pessoas, focando olhos vermelhos queimando somente no homem a sua frente. – Foi hilário chegar da escola, hilário encontrar a Lilian na mesa de trabalho dela do quarto dos fundos perguntar pelo papai e ela nem saber me dizer onde ele estava. Hilário... encontrar ele caído no chão do galpão com a mesma roupa de quarta feira e com sangue por toda parte. Hilário não reconhecer a cara do meu próprio pai... porque ela tinha simplesmente explodido.
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A Melhor parte de mim.
RomanceTalvez o amor se mostre pra você de formas diferentes do que se espera. Talvez ele não seja obvio, talvez venha de onde menos se espera, ou mesmo de muita persistência. O amor gosta da surpresa, do olhar que não se deixa, da pele arrepiada, da vonta...