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- Estás bem? – é impossível ficar de coração sossegado cada vez que ela fica em silêncio.

E, desde que teve a conversa com os pais, esses silêncios têm vindo a aumentar. Noto-a mais pensativa, não tão entusiasmada com as pequenas coisas do dia-a-dia e com várias mudanças de humor repentinas.

- Vais continuar a perguntar-me isso todos os dias assim que acordo? – olhou-me, aconchegando-se por cima do meu braço. Continuei a mexer-lhe no cabelo, totalmente incapaz de sair de ao pé dela como tem vindo a ser um hábito. Começo a adiar as minhas corridas matinais com a Angela para depois de ela acordar, só para conseguir ter estes momentos pela manhã.

- Enquanto sentir que não estás bem – revirou os olhos, fechando-os logo de seguida e dando-me alguns beijos no peito – tu andas mais calada do que o habitual, tens mudanças de humor que não consigo acompanhar e estás chata como tudo.

- E tu arriscas-te a ficar sem um bocado de carne, não tarda muito – bem-dito e bem certo. Deu-me uma pequena trinca na zona do pescoço, encostando logo de seguida o seu nariz naquela zona – eu estou bem. Confesso que foi das conversas mais complicadas que tive com eles – olhou-me – mas, apesar de perceber que posso vir a ter uma relação com eles, eu neste momento só quero ter uma comigo mesma.

- E comigo?

- Começas a ficar em risco, se eu passar a gostar mais de mim para namorar.

- Tu és uma excelente pessoa para se namorar – passou o seu corpo por cima do meu, colocando as suas mãos na minha cara – eu quero que saibas que podes falar sobre tudo o que precisares comigo...

- Eu sei disso. Aliás o facto de andar mais calada, em certo ponto, até tem muito a ver com isso... - ela manteve-se sentada em cima de mim, fazendo com que me apoiasse nos cotovelos para estar mais perto dela – eu não sei o que é que tu pensas sobre este assunto... - é impossível não querer começar a sorrir neste momento, por ter quase a certeza de onde é que ela quer ir com a conversa – eu não quero que seja cedo demais porque estamos juntos há pouco tempo...

- Mas conhecemo-nos há tempo mais que suficiente para sabermos a dimensão de tudo o que sentimos – sentei-me, fazendo com que ela acabasse por ficar sentada entre as minhas pernas – nós somos um nós há quase sete anos. Tenho a certeza de que me conheces melhor do que qualquer pessoa. E, se é para ter filhos, só pode ser contigo e não importa se é daqui a nove meses, um ano ou seis.

- Eu só ia perguntar se não querias ter outro cão, mas isso também pode ser uma opção – assim que se começou a rir, comecei a fazer-lhe cócegas na zona da barriga.

- Agora estás cheia de piada.

- Daqui a uns segundos posso estar a zangar-me contigo se continuas nisso – rodei o corpo dela, deitando-me em cima dela.

- Acho que podíamos fazer outras coisas para esse mau humor não vir ao de cima.

- Não, não podíamos – olhou para o relógio em cima da mesa de cabeceira – daqui a uma hora temos de estar no aeroporto – voltou a olhar-me.

- Muita coisa pode acontecer numa hora.

Assim que os meus lábios tocaram os dela, ela inspirou e depressa levou as suas mãos ao meu pescoço. Todo o seu corpo relaxava por baixo do meu, dando-me a compreender que, afinal, ela estava assim por minha causa. Ela queria falar comigo e não o fazia, muito provavelmente com medo do que eu lhe pudesse dizer.

- Be – olhei-a, interrompendo aquele beijo – eu quero fazer de tudo para que consigas ser mãe.

No dia em que a conheci no canil, para além do seu carinho com aqueles que viriam a ser os nossos cães, os olhos dela não saíram da minha cabeça durante muito tempo. Por serem de um castanho tão claro e invulgar, tornando-os únicos. À luz, tornam-se ainda mais claros e têm pequenos raios de laranja, quase a assemelharem-se ao fogo que nela habita. Aqui, sem qualquer luz sobre eles, esse fogo está lá. Existem faíscas a explodir pelos seus olhos que só se fecham para me beijar de novo.

Always, BeOnde histórias criam vida. Descubra agora