59. Berra, deficiente

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O elevador descia devagar, demorando tediosos minutos a alcançar as duas centenas de metros abaixo do solo. As paredes do bunker ainda eram revestidas por cimento e tubagens férreas, provavelmente pertencentes à planta inicial da fábrica, e escadas metálicas para manutenções e emergências acompanhavam toda a profundidade do fosso, alguns degraus já partidos e enferrujados.

Kim observava as placas de betão, apenas iluminadas por pequenas lâmpadas de presença, focando um ponto ao acaso no vazio, até o padrão na parede alterar-se e aguçar-lhe a curiosidade natural. A partir de certa altura, a rapariga notou marcos desenhados que indicavam uma nova zona — zona D — e debruçou-se sobre o vidro da cabine, embaciando-o com o hálito quente quando a boca se abriu em surpresa e admiração. 

As paredes húmidas e escuras, depois da marcação moderna de uma nova zona do complexo, tinham substituído as tubagens metálicas por diversos tubos transparentes que faziam circular fluidos durante vários metros. Acoplados aos tubos ela notou diversas placas vítreas que forravam o cimento com massas disformes que ela não soube identificar. Alguns dos pequenos aglomerados de tecido viscoso, alimentados pelos líquidos que provinham da teia de tubos, possuíam um pulsar constante, como um batimento cardíaco.

A morena absorveu cada pormenor até o elevador parar no seu destino. Jake apressou-se a sair do cubículo vítreo, enquanto carregava a arma e se mantinha alerta. Kim notou na expressão dele, nas gotículas de suor que lhe escorriam pela nuca e na veia dilatada na têmpora transpirada, que ele estava absolutamente concentrado e preparado para o que viesse. Ao contrário do rapaz, que envergava o projétil em punho e começava a explorar o piso subterrâneo, Kim decidiu guardar a arma que Brian lhe confiara sob o casaco e presa entre as leggings elásticas, decidindo que não saberia usá-la, mesmo que a linha de luz lhe indicasse o alvo a disparar. Ela saiu da cabine do ascensor e esperou que o seu corpo se revolvesse em tremores incontroláveis; esperou que o medo tomasse conta das suas pernas torpes e a impedisse de dar mais um passo e seguir Jake, quando se apercebesse que não havia como voltar atrás.

Ela nascera e morrera ali. Os seus maiores temores ganhavam vida ali e, no entanto, ela não sentiu nada do esperado. Kim não sentia o pulsar frenético do coração nos tímpanos, na respiração ansiosa, nem o suor pegajoso ou tremor nas mãos. Ela conseguia sentir uma ansiedade que era bem-vinda e que a forçava a querer saber tudo sobre si, sem o medo a retrair-lhe as ações.

Ela não seguiu Jake de imediato, apesar de consciente da sua presença por perto, e demorou-se na escuridão do fosso acima deles, seguindo a teia de tubos que descia pelas paredes, demorando-se nos grossos canais que se interligavam lá em cima, divergindo sobre centenas de bolsas que ela reconhecia pelas memórias, e se concentravam numa máquina que ela não sabia identificar mas que já vira antes.

Ela lembrava-se de acordar numa sala semelhante. Mais do que as memórias visuais do local, que lhe aceleravam finalmente o coração, ela revivia o momento pelo odor intenso a desinfetante que se entranhava nas narinas e lhe dava náuseas, pelos sons das grandes turbinas que renovavam o ar acima deles e que se misturavam nos sons individuais dos embriões em desenvolvimento dispostos no armazém embrionário imenso.

Jake parecia tão arrebatado quanto ela e Kim viu que ele se debatia com algo que não partilhava das memórias dolorosas. O rapaz sujeitou todo o peso do corpo forte contra a máquina central, curvando-se contra os ecrãs que rodeavam o equipamento.

Curiosa, Kim seguiu para perto dele, observando o que cativara a atenção do moreno e percebeu que os grandes ecrãs holográficos que a máquina projetava exibiam informação detalhada sobre os processos a decorrer na incubadora. Ela conseguia ver o tempo de gestação de cada indivíduo, com uma identificação numérica diferente da sua, conseguia ver os gráficos que oscilavam em tempo real com as quantidades de nutrientes, oxigénio e outras substâncias imprescindíveis à maturação daqueles seres e, por momentos, Kim agradeceu que o seu cérebro não tivesse parado antes de ela obter informações básicas sobre o desenvolvimento humano para perceber o que faziam naquele sítio.

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