33. Memórias

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Dia 36

A primeira coisa que lhe passou pela cabeça foi a possibilidade de estar cega. Surda. Paralítica. Talvez tivesse morrido e se assim fosse alguém que lhe permitisse ficar inconsciente para sempre, para não ter de sentir o pânico invadi-la, ao ponto de não a deixar respirar.

Depois de segundos de aflição compreendeu que vivia e que tinha o direito de lutar pela sua vida. Ela não se conseguia lembrar do local onde estava, mas a sua prioridade era respirar. Ao aperceber-se da asfixia eminente, apalpou o que a confinava àquele espaço escuro e irrespirável. Estrebuchou e remexeu-se para se tentar soltar, tateou o saco preto onde a aprisionaram horas antes e procurou uma saída. Guinchou e berrou ao sentir o oxigénio consumir-se depressa demais, movida pelo pânico irracional.

– Cala-te! – ouviu, seguido de uma forte pancada na sua barriga, que a forçou a conter a respiração por alguns segundos e parar de gritar em socorro.

A dor sobre o estômago fê-la esquecer-se momentaneamente de respirar e compreendeu que morreria ali.

O silêncio imperou de novo e ela tentou uma vez mais, sem qualquer ruído da sua parte. Encontrou o fecho e tentou puxá-lo com o dedo indicador. Sentiu a pele rasgar à medida que puxava o fecho com ânsia e o encravava. Ignorou a dor no seu dedo e respirou fundo quando se conseguiu erguer do saco e mover o tronco.

Avaliou o local onde se encontrava e não o reconheceu. Não havia nada que a fizesse lembrar daquelas paredes imaculadamente brancas, do chão igualmente branco, do cheiro a antissépticos e a carne queimada. Só sentiu o choque tomar conta de si ao ver inúmeros sacos abertos ao seu lado, cheios de jovens raparigas aparentemente iguais, inertes, inconscientes, nuas. Mortas.

Do lado oposto, a visão macabra fê-la gritar. Um grande reservatório metálico, como a maca onde a colocaram há dias, dispunha uma pilha de raparigas em posições anatomicamente impossíveis, partes do corpo disformes, aparências moribundas e defeituosas.

Livrou-se do saco quase no mesmo instante e tentou escapar. Ao fundo do pequeno armazém podia ler "Incineradora" num grande letreiro digital. Talvez aquela fosse a única saída. Não queria morrer e fazer parte daquele amontoado de jovens. Só gostava de saber porque ali estava, contudo a sua prioridade era fugir. Só fugir.

Correu para a porta automática e procurou abri-la a todo o custo. O que ela não sabia é que alguém a observava.

– Onde é que pensas que vais? – disse um homem, com a voz mais calma que já ouvira. – O caminho é por aí, querida, mas não sejas assim. Sê uma boa... – O homem hesitou antes de continuar, para observá-la detalhadamente. – coisa e espera pelas tuas colegas.

– Senhor... – Ela sentiu-se tremendamente aliviada por encontrar alguém naquele local tão mórbido. – DeWitt – leu na bata suja do homem. – Podia indicar-me o caminho para casa? – pediu, afável e tentou sorrir, apesar do medo. – E sabe onde deixei as minhas roupas? Podia dizer-me. Por favor? – coçou o peito inocentemente com o dedo magoado e esperou que o homem fosse gentil o suficiente para a ajudar a sair dali.

Ele observou-a uma vez mais, dos pés à cabeça, e não pareceu surpreendido. Ergueu um sobrolho e esboçou um sorriso mordaz, que ela não compreendeu.

– Claro, querida – disse, num tom de voz surpreendentemente suave. – Por aqui. – Acompanhou-a novamente à sala, guiando-a com uma mão nas costas e observando o corpo magro com deleite. – Podes deitar-te?

Ela acenou e sorriu, pensando na gentileza do homem. Deitou-se sobre uma mesa metálica, cuja superfície ele limpara com a mão suja. Deitada, esperou por algo. Palavras, um lençol que a cobrisse, um exame médico, que a deixasse dormir. Mas tudo o que viu foi um sorriso formar-se no rosto do homem que mais uma vez não compreendeu.

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