5. Achas que ela respira?

6.2K 503 53
                                    

Dia 56

JAKE voltou a virar-se na estreita cama e suspirou fundo, colocando-se em posição fetal. Já não conseguia colocar o braço sob a cabeça, pois o sangue deixara de circular no seu membro, e tudo o que conseguia sentir, para além do colchão excessivamente mole, era um formigueiro perturbante que não o deixava dormir. Apesar do desconforto, ainda não tinha coragem para abrir os olhos. Temia abri-los e ver que a noite ainda ia alta. Que se deitara há pouco mais de duas horas.

Sentindo o suor formar-se na sua nuca, ergueu o tronco e esfregou as pálpebras ainda fechadas. Aidan, na cama ao lado, dormia pacificamente. Como é que ele conseguia, não conseguia perceber.

Procurou pela sua roupa algures espalhada pelo quarto juntamente com a de Aidan e, depois de a vestir, pegou no maço de tabaco que pousara na mesa de café, na noite anterior, e saiu.

Não era possível que tivesse dormido apenas três horas. Não era possível que ainda fosse de madrugada, que o sol ainda estivesse coberto pelas pequenas moradias.

Jake inspirou fundo, aspirando o ar exageradamente matinal. Desceu as escadas do alpendre e retirou um cigarro do maço que trouxera consigo para colocá-lo entre os lábios. Depois, quase arrancou os próprios cabelos ao perceber que se esquecera do isqueiro.

Recolocou o cigarro dentro do pacote e sentou-se nas escadas, olhando para o bairro ridiculamente calmo. Rachel tivera a sorte de ocupar a moradia de uns familiares dos Nolan, emigrados na América e já regressados ao seu país de origem há alguns anos. Pelo menos estava protegida do rebuliço da cidade que parecia nunca dormir. O bairro era calmo. Tão calmo que um pequeno corpo jazia no chão a apenas alguns metros de si, perto da estrada, e não fazia sentido.

Jake franziu o sobrolho debatendo-se entre a vontade de se levantar e perceber o que acontecera àquela pessoa e a de voltar para casa e acordar Aidan para lhe fazer companhia nas suas insónias matinais. Como Aidan conseguia ser a pior das companhias pela manhã, levantou-se e avançou até ao corpo.

Aproximou-se lentamente, mesmo quando percebeu que se tratava de uma mulher. Agachou-se perto dela quando percebeu que estava inconsciente e o choque tomou conta de si quando viu sangue à sua volta.

Ousou tocar-lhe e movê-la, para observar a gravidade dos seus ferimentos. Quando o fez, foi impossível controlar o coração que começara a bater desenfreadamente.

Ela era jovem. Mais jovem do que ele. Pôde observá-la por momentos e perceber que não pertencia àquele lugar. Apenas uma t-shirt velha e uns calções largos que não tinham sido feitos para aquele corpo franzino o cobriam. A ferida na sua testa era preocupante. Coagulara há muito, mas podia ver a quantidade de sangue que ela perdera.

A sua pele ferida e ensanguentada contrastava com os longos fios de cabelo castanho claro que se colaram ao espesso líquido, assim como pequenas pedras do pavimento. Os lábios pareciam estar intactos, mas adquiriram uma cor anormal para um ser humano vivo; tornaram-se arroxeado, secos e gretados. A sua face pálida e aparentemente suave estava arranhada e igualmente suja, tal como grande parte do seu corpo magro. Os olhos permaneciam fechados, protegidos pelas pálpebras cobertas de longas pestanas, adornados por sobrancelhas ligeiramente irregulares. 

Há quantas horas estaria inconsciente? Pela pulsação estável, Jake percebeu que ela não podia estar desmaiada há tanto tempo. Podia? Provavelmente perdera os sentidos ao embater com a cabeça no passeio. Mas o sangue...

Maldito jet lag! Se não tivesse acordado e decidido sair de casa de madrugada, não teria sido o primeiro a encontrar uma sem abrigo ferida e não teria a responsabilidade de a salvar. Mas ele não sabia fazer outra coisa, não era? Durante todos aqueles anos a servir o país, sempre se valou do seu altruísmo. Talvez por egoísmo, abandonara aquela vida e seguira um caminho mais estável, no entanto, a sua consciência não deixaria que se fosse embora, ignorando-a. Nunca seria capaz disso. Por isso, sem pensar muito, pegou nela com uma facilidade que o surpreendeu e levou-a consigo.

Em casa, ele acomodou-a com cuidado no sofá e, apesar de ter sido silencioso, Aidan percebeu a presença dele fora do quarto.

– Jake? – sussurrou o amigo. A pergunta, vinda das escadas, foi feita em tom sonolento. Aidan rastejava pelo chão e ainda não tinha se lembrado de abrir os olhos decentemente. – O que estás a... Oh! Ok. – A surpresa estava estampada no seu rosto ao ver o corpo inerte no sofá – O que é isto?

Jake ignorou-o e procurou por sinais físicos que lhe permitissem perceber se ela ia recobrar a consciência ou não. Apesar do caos lá fora, tinha que ligar para o serviço de emergência médica.

– Achas que ela respira? – continuou Aidan, espreitando a rapariga à distância, enquanto Jake se agachava novamente perto dela.

Jake levou as mãos ao pescoço frio dela, tentando sentir vida através dos seus dedos. O fraco pulsar mantinha-se estável. Fraco, mas estável.

– De onde é que ela veio, Jake? Eu deixei-te a dormir sozinho. – Aidan agachou-se igualmente ao lado do amigo, mas cobriu a boca e o nariz ao aproximar-se dela.

– Encontrei-a lá fora, agora mesmo.

– Será que está morta? – tornou a questionar o rapaz loiro, engolindo em seco, tomando consciência da responsabilidade que agora tinham em mãos. – Logo aqui à porta?! Que sorte do caraças!

– Deixa de dizer asneiras, Aidan, e liga para o 911 – pediu Jake, familiarizando-se com a ferida aberta na testa dela. Não seria assim tão difícil de tratar. Mas se ao menos ela acordasse... Não a podia deixar morrer naquele sofá. Os amigos não estavam preparados para ver a morte tão perto. Nunca ninguém estava, nem mesmo ele.

A preocupação agora era fazê-la acordar e perceber que estava bem. Não descansaria enquanto ela não saísse daquela casa pelo próprio pé.

– Sabes que eu nem sou hipocondríaco, Jake, mas com esta cena da doença não me parece que façam domicílios. – Aidan ainda tentou ligar para o número de emergência, mas a chamada acabava sempre da mesma maneira. – Vês? Ninguém atende.

– Vai buscar um estojo de primeiros socorros. Qualquer coisa para limpar isto. Esta miúda tem litros de sangue colado à testa.

– Não é preferível voltar a ligar para o 911? Se calhar, enganei-me – insistiu Aidan, mantendo-se distante dela, por fim. Não iria tocar naquela ferida com as próprias mãos. Não iria fazer respiração boca-a-boca nem sequer massagens cardíacas numa desconhecida que jazia no sofá de uma tia que nunca vira na vida. – Eu não quero voltar a parecer hipocondríaco, mas sabes que ela pode estar doente... E neste caso, tu podes ficar também! Mas o importante é que, se ela está doente, é provável que vá morrer daqui a uns dias. E entre morrer agora ou daqui a uns dias...

– Aidan! – Desta vez Jake não conteve um grito meio sussurrado para não acordar os restantes.

Aidan resmungou qualquer coisa e foi procurar o estojo de primeiros socorros da irmã ou algo parecido para poderem desinfetar a ferida. Precisavam também de algo que a fizesse acordar, mas nenhum dos dois sabia o que era.

Provendo-se de todo o conhecimento de socorrista que Jake ainda pensava ter, ele e Aidan tentaram a todo o custo que ela recobrasse a consciência. Ele limpou-lhe as feridas, cobriu-as e esperou. A manhã acabou por chegar mas ela não acordou. 

***

NOTA DE AUTORA

Espero que tenham percebido a ligação da personagem "mistério" e o grupo de amigos. Considerem as personagens mais ou menos apresentadas. Que comece a Uprising, então. 

UPRISINGOnde histórias criam vida. Descubra agora