2. É bom ter-vos de volta

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Dia 55

RACHEL sentiu um alívio indescritível quando finalmente chegou a sexta-feira. Era como se essa fosse a chave para o fim de semana, um fim de semana que, apesar de ser o mais solitário até agora, trazia a tão esperada pausa.

A loira arrumou a sua secretária o mais rápido que o cansaço permitia, apesar de os movimentos serem lentos e vagarosos. Há horas que permanecia sozinha no edifício, responsável por uma redação que não funcionava, e desde que o sol se pusera, o silêncio enfadonho tornou-se ensurdecedor. 

Quando estava prestes a desligar as luzes do escritório, um par de mãos rodeou a sua cintura e a puxou para perto. Ela foi empurrada contra um corpo que não reconheceu imediatamente, e antes que pudesse reagir, os lábios fortes do outro encontraram os seus num beijo decidido. A surpresa inicial deu lugar a uma sensação familiar, e ela se entregou ao carinho com naturalidade. Não foi preciso muito para que ela percebesse quem era. O sabor dos lábios dele era inconfundível.

David. 

O pensamento surgiu com um lampejo, e ela enlaçou o rapaz com a mesma ânsia saudosa, aproveitando a diferença de alturas para se acomodar nos braços dele com facilidade. Ela não conseguia perceber a presença dele ali, a milhares de quilómetros de casa, quando nada o previa. Nem queria, desde que a beijasse para sempre.

– Olá, amor. – David interrompeu o beijo para a cumprimentar, finalmente, com um sorriso de inocência disfarçada que competia com o sotaque arrastado.

– O que estás a fazer aqui? – Rachel devolveu o cumprimento com um tom de fingida reprovação.

– Bem, o segurança lá embaixo não foi exatamente amigável, mas acabou por admitir que a minha namorada era a última pessoa a sair do edifício, que estava sozinha, que iamos todos morrer e que a humanidade estava em perigo... Esse tipo de coisas. – Rachel revirou os olhos, incapaz de conter o sorriso enquanto se mantinha aconchegada nos braços de David. – Eu teria ido diretamente para tua casa, o jet leg está a dar cabo de mim, mas a verdade é que não faço ideia de onde moras. Pensei que fosse mais fácil procurar por uma estação de televisão, mas tens noção de quantas existem só nesta avenida? É ridículo. 

Rachel riu com vontade pela primeira vez nas últimas semanas desgastantes e acariciou o cabelo curto e suave da nuca dele, mantendo-se perto sem resistência.

– Não acredito que vieste sem me dizer – sussurrou ela, beijando-o repetidamente no rosto enquanto ainda estava envolvida nos braços dele.

– Achas que te deixaria passar todo o verão sem mim? Morri de saudades, Rachel Nolan – confessou David, enfiando as mãos nos bolsos das suas calças de ganga.

– Porque é que não avisaste antes? – ela fingiu-se chateada por ele não a ter avisado. – És doido? Não é recomendado viajar para países onde há casos confirmados. E acredita, aqui há imensos e na Irlanda...

Ele interrompeu-a com um beijo.

– Relaxa. A viagem foi tranquila, e metade desta cidade parece adorar as máscaras. É seguro. Sempre quisemos vir aqui, lembras-te? E agora parece o momento certo.

Os olhos de Rachel brilharam ao relembrar os planos que partilharam desde o início da relação, na adolescência. Desde que decidiram partilhar uma casa numa cidade diferente enquanto estudavam, mesmo quando os caminhos de ambos se separaram e ela decidiu abraçar a sua carreira noutro continente. Os planos sempre foram muitos e impossíveis. 

– És um caso perdido – disse Rachel com um sorriso travesso, envolvendo o pescoço de David com os braços e roçando o nariz no dele, aproveitando o calor e a proximidade. – Vai ser o melhor verão de sempre.

Ela mordeu-lhe o lábio inferior, e antes que David pudesse retribuir o gesto, os seus lábios se prendiam aos dela, aveludados e suaves, dando vazão às saudades que os consumiam há meses e ao sentimento familiar, de sempre e para sempre.

O beijo manteve-se terno, deles, enquanto partilhavam tolices carinhosas entre lábios e risadas cúmplices que não deixavam esquecer a amizade de longos anos, e só a tosse que soou propositadamente os fez afastar.

– Vão continuar nisso muito tempo ou é seguro entrar? – perguntou o autor da interrupção forçada, encostado à ombreira da porta. – Imaginem o que os hipocondríacos pensariam se vissem tanta troca de saliva.

Com um sorriso genuíno, Rachel largou o namorado e sobressaltou-se com a voz do irmão. O irmão!

– Não acredito! – exclamou ela, correndo para abraçar o irmão mais velho. – Não acredito que tu também és outro inconsciente, Aidan! – Ela quase lhe bateu, mas não resistiu à afeição fácil ao vê-lo.

– Não te esforces tanto a disfarçar. Olha só para ti, Rach. Adoraste a surpresa.

Aidan não precisava de o dizer. David conseguira percebê-lo imediatamente, assim que a recebeu de novo nos seus braços, pela primeira vez em meses.

– E lamento. – Aidan apressou-se a interromper o casal quando se tornou demasiado óbvio no olhar de ambos que ele estava a mais. Colocou-se rapidamente entre eles, abraçando ambos pela cintura e encaminhou-os para fora da sala. – Por mais que vocês queiram continuar esse ritual de acasalamento esquisito que nunca irei aprovar há outra pessoa lá em baixo que está ansiosa para ver esta menina.

David revirou os olhos, mas o sorriso nos lábios de Rachel era impossível de ignorar.

– É bom ter-vos de volta – disse ela, abraçando mais uma vez o irmão e olhando profundamente nos olhos de David.

Juntos, os três saíram da sala, ignorando os monitores ligados. Os pequenos ecrãs contrastavam a felicidade dos três jovens. Neles passavam constantes atualizações do que o mundo aprendera a temer e respeitar recentemente.

«Ao contrário do previsto, a Organização Mundial de Saúde admite não haver recursos suficientes para enfrentar um ataque biológico deste tipo. O que se supunha tratar de um vírus simples é na realidade uma nova arma poderosa contra a humanidade. Ao contrário de guerras anteriores, desta vez não existe exército suficiente para nos defendermos. Esta é a realidade...»

Mas David, Rachel e Aidan viviam num mundo só deles.

Pelo menos, por enquanto.

***

A rapariga desceu as escadas rolantes que a levavam para fora da estação, passando por quem se atravessava no seu caminho. Ela sentiu um alívio profundo ao ver a agitação da cidade. Tinha passado horas fechada numa carruagem de comboio, cercada por desconhecidos, numa viagem que a levara a um lugar totalmente novo. A viagem só havia sido interrompida quando um dos seguranças informou que tinham chegado à última paragem.

Ela olhou pela janela, confusa, procurando algo familiar e reconfortante, mas não encontrou nada. Na verdade, desde que saíra do Canadá, tudo era estranho. Nem mesmo quando finalmente chegou à cidade e viu o letreiro "Bem-vindo a West Hollywood" do outro lado da rua, ela se sentiu em casa.

E agora?, pensou. Estava completamente perdida. Tinha deixado o Canadá para trás e atravessado o continente inteiro para chegar a uma cidade completamente desconhecida.

Suspirando de frustração, a rapariga ajeitou a mochila nas costas, mostrando a sua condição de falsa turista, e avançou com determinação. Talvez fosse hora de se estabelecer num lugar só, como pessoas normais. Talvez fosse a altura certa para começar de novo e ser uma pessoa normal, como toda a população daquela cidade desconhecida.


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