Jake não saberia dizer há quantos minutos, horas, estava à conversa com Rachel, mas o momento tornara-se tão precioso que perdeu a noção do tempo. Nos últimos dez anos, desde a sua adolescência, que se perderam momentos, rotinas e amizades importantes, e por isso o simples ato de assaltar a cozinha durante a noite, em busca da dupla explosiva e mágica de leite e bolachas tornara-se uma raridade. Não o fizera mais por achar infantil e porque arranjara atividades bem mais interessantes e produtivas para as suas insónias. Mas Rachel continuava fiel a ela mesma, à infância que partilharam e Jake não conseguiu ignorar a nostalgia que a visão lhe proporcionara quando entrara na cozinha.
Com um sorriso pegou numa bolacha e mergulhou-a no copo de leite de Rachel, num silencioso pedido para que o deixasse ficar enquanto o sono não vinha.
– Quero pedir-te um favor – pediu, quando esvaziou o copo e se entretinha a comer bolachas simplesmente para lhe fazer companhia.
– O quê?
– Já que eu não consigo convencer o David a acabar com a loucura de se ir embora...
Rachel levantou-se para colocar os dois copos na máquina de lavar loiça e tentou arranjar uma justificação para não fazer o que Jake propunha.
– Jake, eu já estou por tudo. Não vou forçá-lo a ficar quando talvez já nem eu queira ficar – declarou, fechando a porta do eletrodoméstico. – Não tenho trabalho e quero muito voltar para casa.
– Eu ia pedir-te para falares com a Kim – esclareceu o rapaz, tirando uma última bolacha do frasco. – Eu conheço bem a teimosia do meu irmão, nem tu lhe dás a volta. Mas ela... com ela é diferente.
– Porque é que me estás a pedir isso?
Jake não conseguia explicar porque o pedia. Não lhe podia dar uma justificação exata porque não o conseguiria fazer por palavras. Apenas sentia e nunca fora bom a expressar o que sentia. Ambos sabiam-no.
– Fala com a Kim. Convence-a a ir connosco – insistiu.
– Ela quer ficar?
– Não propriamente. Ela simplesmente não quer voltar – clarificou. Rachel estranhou a reação da rapariga que há dias quase implorara para que não a colocassem fora de casa, não a deixassem na rua, mas ele não lhe tirou qualquer dúvida. – É a Kim. Não perguntes. Depois de hoje percebi que ela não pode ficar sozinha.
– O que é que aconteceu?
– Ela ia afogando-nos aos dois – disse com um encolher de ombros, contendo-se para tirar outra bolacha do frasco, mas o riso da amiga demoveu-o. – Não te rias – pediu, abrindo o sorriso igualmente. – Ela é tão estranha... Parece uma criança em ponto grande, não mede as consequências das coisas que faz, é impulsiva, assustada, diz e faz coisas que uma pessoa normal nunca faria e se viras costas por dois segundos corres o risco de vê-la enfiada num reservatório de água, que por acaso pode estar infetada, com alguns cem metros de profundidade. Não saber nadar ajudou imenso. Ela simplesmente não pensa!
Rachel estudou o rosto do amigo, a sua expressão irritada enquanto descrevia a rapariga. Não conseguia perceber a insistência para que ela ficasse com eles, quando fora o primeiro a pô-la fora de casa, quando parecia não suportar as atitudes dela.
– Ela não é só isso e tu não fazes o tipo preconceituoso. A Kim é mais do que uma rapariga trapalhona e assustada – defendeu-a, abrindo o frasco das bolachas para que Jake tirasse as últimas. Não descansaria enquanto não as comesse.
– Eu sei – concordou, observando a bolacha distraído. Talvez fosse por saber que Kim era mais do que demonstrava, por saber que só se mostrava a ele, por saber que ajudara Rachel cegamente e que voltaria a fazê-lo mesmo que isso colocasse a sua vida em risco, que a queria ajudar. Para além disso, divertia-se com ela. Com as suas perguntas sem sentido, com as suas conclusões disparatadas e que muitas vezes o confundiam. – É por isso que acho que ela devia voltar connosco. Talvez antes de irmos embora possamos ajudá-la a encontrar a família, alguém. Eu sei lá, mas convence-a a não ficar. Não sozinha.
– Porque é que te estás a preocupar tanto? – inquiriu Rachel, num tom que ele pouco apreciava.
– Eu não estou preocupado. Só acho que...
– Estás preocupado – interrompeu-o, abrindo o sorriso. – Demasiado e não queres estar. Era mais fácil deixá-la aqui, fechares os olhos ao perigo que ela corre e esqueceres que alguma vez a ajudaste, não é? Mas não és capaz – tornou a sorrir e perscrutou-o de uma forma que o obrigou a fugir com o olhar. – Queres falar, Brody?
– Não faças isso, Rachel – pediu, desconfortável.
– Isso o quê?
– Essa coisa com os olhos e esse sorriso – Detestava que ela tivesse a capacidade de o ver como ele era, aquilo que pensava e o perturbava. Habituara-se a ser transparente para David, mas a relação deles era simplesmente especial e incomparável à sua amizade com Rachel. – A Kim é boa pessoa, - demasiado, acrescentou a sua mente rebelde - eu gosto dela. Mesmo sendo esquisita como tudo, há qualquer coisa de cativante nela – tentou justificar a sua preocupação. Optou por ser totalmente sincero, sabendo que era impossível mentir sem que Rachel não notasse. – Mas esta dependência por mim... É estranho. É tipo muito estranho. Tudo o que eu fiz foi tratá-la mal e ela passou a depender de mim para tudo. Bem, ela também te vê tipo como uma deusa, mas contigo eu ainda percebo. Eu nem sequer fiz nada e ao fim de duas semanas ela já não quer que eu a deixe. – Rachel tornou a rir, fazendo-o sentir-se ridículo pelo que dizia. Parecia ter treze anos de novo. – Não mete piada. Não estamos a falar de alguém que tenha dado uma boa queca com o grande Jake Brody, se tenha apaixonado irremediavelmente quando se veio e agora não quer outra coisa.
– Tu preferias isso?
– Confesso que não me surpreendia tanto, mas com a Kim... – Apesar de se esforçar para não pensar em Kim como uma rapariga, o esforço tornara-se vão quando ela a abraçara naquela manhã. Sabia que o fizera por necessidade, pelo medo que a consumia ser mais forte do que aquele que a impedia de tocar em alguém. Mas ele não conseguira ficar indiferente à intimidade que o momento proporcionara.
Ela era bonita, ele admitia para si mesmo. Os seus traços eram delicados, nunca tocara numa pele tão suave. O sorriso era fácil e contagiante, a personalidade estranha tornava-a misteriosa e despoletava-lhe o seu sentido protetor. Nunca houvera nada de sexual nos seus pensamentos relacionados com Kim. Mesmo depois de a ter sentido contra si, continuava a querer protegê-la e não se iria aproveitar dela, mas algo ficara claro: o facto de não se relacionar com Kim em nada tinha a ver com a sua aparência, com a atração que exercia sobre si. Porque essa tornara-se evidente...
– Esquece, com a Kim seria esquisito – concluiu, em voz alta.
– Não a julgues mal, Jake. Não acredito que a miúda queira pedir-te em casamento nem nada do género. Perdeu a memória, ainda parece perdida e encontrou em ti uma figura protetora. E se queres que te diga, ela não poderia ter escolhido melhor – Rachel sorriu e deu-lhe um beijo doce na bochecha, antes de se levantar.
– Mas Rach... – Jake puxou-lhe o braço para a travar e tornar a pedir: – Fala com ela.
– Depois de tudo o que me disseste devias ser capaz de perceber que se há pessoa capaz de a convencer seja do que for esse alguém és tu.
Jake sorriu e concluiu que ela tinha razão. Tornou a puxar-lhe o braço quando a rapariga se despediu, afirmando que ambos precisavam de dormir, e levantou-se para a abraçar.
– Tinha imensas saudades tuas, miúda – confessou, envolvido por uma ternura que o amolecia. Estava com Rachel todos os dias, mas só naquele momento se apercebera da falta que ela lhe fizera durante anos. Tinha saudades de quando era mais baixo do que ela, de quando ela dizia coisas que o faziam pensar que encontrara a rapariga mais inteligente do mundo e até mesmo quando ela o agarrava e enchia de beijos inocentes, que o confundiam bastante. – E sim, estamos a precisar de ir dormir – concluiu, beijando-lhe a testa. Depois, sem aviso, pegou-lhe pelas pernas, e colocou-a ao ombro, com o intuito de a levar para o quarto. A rapariga estrebuchou e bateu no rabo dele diversas vezes para que a colocasse no chão, mas resignou-se rapidamente. Também tivera saudades dele.
***
NOTA DE AUTORA
O que acham da relação da Rachel com o Jake? Como eu disse no início: não há qualquer tipo de triângulo. Eu sei que os últimos capítulos têm sido muito em torno de sentimentos e coisas melosas, mas a Up não é só feita de mistério e gente doente. Eu aposto muito nas pessoas e as relações deste grupo de amigos fazem a história.
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UPRISING
Science FictionNum futuro não muito distante, uma nova estirpe viral ameaça exterminar a espécie humana da Terra. O estado máximo de alerta pandémico obriga ao êxodo das grandes cidades. Em Los Angeles, um grupo de amigos tenta ignorar o pânico geral da população...