7. Sobrevivência

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ACORDAR em locais totalmente desconhecidos já tinha virado rotina para Kim, por mais que quisesse mudar isso.

Além de tentar sobreviver naquela cidade desconhecida, um dos seus próximos objetivos era conseguir um emprego e, pelo menos, alugar um quarto algures. Não podia mais vagar pelas ruas como uma sem-abrigo. Depois, ela juntaria recursos para procurar a sua família ou alguém que a conhecesse melhor do que ela mesma. Talvez conseguisse isso um dia, quando recuperasse a memória e se descobrisse.

Kim deixou de fitar o teto sobre a cama onde dormira nas últimas horas e encolheu-se o máximo que pôde, cobrindo-se com o edredão aconchegante, aproveitando o conforto do colchão. Sabia que estava sob os cuidados de pessoas boas, ou nunca a teriam colocado ali. Se não fossem boas pessoas, a teriam mandado embora e nem sequer a teriam ajudado ou tratado das suas feridas. Queria conhecê-los, embora tivesse medo.

Apesar das longas horas de repouso, ainda se sentia fraca e debilitada, com as habituais náuseas a atormentá-la. A sua testa já não a incomodava tanto e a pele começara a cicatrizar, assim como os pequenos cortes que possuía no rosto, mas ainda estava longe de se sentir bem.

Ao observar o quarto, quase na penumbra, reconheceu a mochila que tanto procurara. Quase suspirou de alívio. O mal-estar acabaria em minutos. O rapaz amável e estranho ouvira-a antes de ela perder a consciência. Kim ficar-lhe-ia grata para sempre.

Perto da janela, sobre um pufe colorido, estava a sua mochila, que pegou rapidamente e vasculhou o seu interior à procura do que realmente a faria recuperar. O rapaz não a traíra, não desrespeitara sua privacidade, trazendo-lhe a mochila exatamente como a tinha deixado.

– Sejas quem fores, obrigada – murmurou a morena, arregaçando as mangas.

*** 

Jake tinha até medo de se aproximar de um espelho. Precisava de um banho demorado, para limpar qualquer vestígio de sangue que ainda tivesse, mas também para acalmar a mente. Ele simplesmente precisava dormir. Mas antes de tudo, precisava comer.

Ao chegar à cozinha, não se chocou com a cena sobre o balcão. Aliás, havia jurado para si mesmo, há anos, que ver o irmão, dois anos mais novo, literalmente colado a uma mulher, era perfeitamente normal. Mas David beijava Rachel com uma ternura que dava inveja a qualquer solteiro que só conseguisse algumas noites de prazer, e ela, uma das mulheres mais bonitas que Jake já tivera o prazer de conhecer, correspondia aos carinhos do namorado, envolvendo-o com suas pernas e braços, num abraço perfeito e cúmplice.

Ele sentia genuína felicidade por vê-los juntos. David tinha uma personalidade única, e nem sempre fácil.  Nem toda a gente sabia como lidar com ele, mas Rachel sempre soube. Jake ainda se surpreendia por namorarem há tanto tempo, quando tinham vivido tudo juntos, desde sempre. Eram opostos completos, e, no entanto, a ligação entre eles era preciosa.

Incomodado com os pensamentos sobre o relacionamento, Jake tossiu propositadamente, tentando interromper o pré-coito em pleno balcão da cozinha.

– Não queria ser chato, mas agradecia que alguém me passasse uma caneca – pediu, malicioso, ostentando um sorriso inocente e apontando para o armário atrás da loira.

Rachel riu e abriu o armário para retirar a caneca que Jake pedira e entregou-lha.

– Será que é seguro beber alguma coisa daqui? – averiguou Jake, observando a caneca de forma minuciosa.

– Oh Jake! – repreendeu Rachel, mas com um sorriso nos lábios.

– Nós não estávamos...

– Esquece, David... Não continues porque assim eu sei que vou ficar a saber onde já o fizeste e como e quando e sinceramente prefiro manter-me na ignorância. E bem, a rapariga já deu sinais de vida? – perguntou, mudando o rumo da conversa e levando a caneca de leite aos lábios. – Que pergunta... Estavam demasiado ocupados para perceber. – Revirou os olhos e caminhou vagarosamente para a sala. – Acho que vou ver se ela ainda se lembra de como se respira...

– Jake – chamou David, rindo.

– E essas coisas vitais.

– Jake! – gritou. – Convém deixares cá o pacote de leite.

Jake voltou à cozinha e fez uma careta infantil para o irmão. 

– Limpem tudo no final – aconselhou e largou o pacote em cima do balcão ocupado anteriormente pelo rabo de Rachel. – Arruma-me isso quando acabarem, querida.

*** 

Jake pensou na melhor forma de abordá-la agora que ela descansara e conseguia, julgava ele, pensar com mais clareza. Acordara com alguma curiosidade sobre ela e queria sinceramente saber se ela melhorara ou se nada lhe acontecera nas últimas horas em que se mantivera fechada no quarto. Talvez fosse imprudente ir vê-la sozinho, pois sabia que não receberia bem a visão de encontrá-la morta sobre a cama ou a notícia de que ela se lançara da janela, desesperada.

Talvez fosse melhor deixar o seu papel de Jake no País das Maravilhas e regressar ao mundo real, onde nem todas as pessoas desconhecidas são loucas ou com tendências suicidas. No entanto, já tinha visto muita coisa e era impossível não considerar as hipóteses mais descabidas.

Finalmente, bateu à porta do quarto onde ela dormira. Não esperou resposta e abriu a porta, espreitando com um sorriso simpático.

– Posso?

Mas assim que entrou e olhou para a rapariga, o sorriso desvaneceu-se e as suas sobrancelhas uniram-se em desentendimento.

– Tens dois segundos para começares a explicar – ordenou, engolindo em seco e fechando a porta atrás de si com mais força do que ambos esperavam. 

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