22. Eu não sei mentir

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Dia 69

Rachel piscou várias vezes, sentindo as pálpebras coladas por uma substância viscosa. Fitou o teto e esperou que a sua visão se ajustasse. Não demorou muito para perceber a máscara que quase a sufocava e a retirou com urgência, inspirando fundo. O quarto fedia, concluiu com uma careta enojada, ou talvez fosse ela. Talvez fosse o sangue seco e as secreções repugnantes na máscara continha, ou o facto de não tomar banho há dias.

Levou as mãos húmidas ao nariz para bloquear o cheiro nauseante, enquanto uma estranha leveza percorria seu corpo, uma dormência nos membros. Conseguiu sentar-se na cama com cuidado. Passou os dedos pelos cabelos oleosos e sujos, que pareciam ter perdido densidade e volume. Observou o decote de seu pijama, notando sua magreza. As manchas já se haviam desvanecido, restando apenas hematomas. Tocou a pele, constatando que descamava.

Rejuvenescida, levantou-se com cautela, experimentando a incerteza das pernas. Espreguiçou-se e abriu as janelas para deixar o ar fresco entrar e arejar o quarto. Uma sensação de alívio percorreu os seus músculos ao rodar o pescoço, uma pequena vitória após tanto tempo deitada. De repente, sentiu que tomar um banho era a prioridade, assim como eliminar o gosto amargo da boca.

Depois, dirigiu-se à cozinha, atraída pelo aroma tentador que pairava no ar. Sentia uma fome incontrolável, e torceu para encontrar o almoço pronto e à sua espera. Mas algo a deteve na soleira da porta. Jake mastigava uma sandes e Kim girava freneticamente num dos bancos altos, e comentava:

– ...E ela foi má por não tê-lo deixado subir para cima da porta. Ele morreu congelado e afogou-se por causa dela! Ou ao contrário, mas não gostei. Eras capaz de me fazer o mesmo? Nunca na vida vou andar de barco.

Rachel rapidamente captou o tópico da conversa, como se fosse parte de uma rotina já conhecida na casa. Decidiu não interromper.

– É apenas ficção, Kim.

– Não é nada! – Kim parou de girar no banco, sorrindo enquanto a tontura se dissipava. – Ainda há bocado disseste que o navio se afundou na vida real, ou mentiste?

Jake sorriu, sem desviar os olhos do seu prato, e tentou explicar:

– Não, só...

– O Jake está a tentar dizer que o rapaz que viste morrer congelado nunca existiu. O filme é uma história de amor meio cliché, mas choro sempre que o vejo. – Rachel não notou a expressão surpresa nos rostos deles, ou que Jake interrompeu a refeição e deixou os talheres caírem no prato. Ela estava a achar a discussão interessante, mas decidiu intervir de qualquer maneira. – Hoje em dia os navios de cruzeiro não afundam assim, e não morrerias congelada com tanta facilidade. Para além disso, estou morta de fome... – Ela percebeu a surpresa na expressão de ambos e que Jake estava paralisado, os talheres suspensos no ar. – O que foi?

Jake engoliu a comida que mastigava, olhando para a amiga sentada à mesa, um sorriso incrédulo se formando em seus lábios.

– Mas ontem... tu estavas... nós pensámos... Caramba. – Ele apoiou os cotovelos na mesa, apoiando o rosto na mão, completamente perplexo com a rápida recuperação de Rachel. – És mesmo tu.

Ela riu com sinceridade, quase arrancando um sorriso de Jake também.

– Não fiques a olhar para mim assim e serve-me lá essa massa deliciosa que estás a comer. E para de te comportar como se fosses o meu pai. Eu sinto-me mesmo bem. – ela brincou, tentando dissipar o clima de espanto à sua volta. 

Ele continuou a olhar, incapaz de acreditar no que via. David apareceu na cozinha, resmungando algo ininteligível. Na verdade, ele vinha a resmungar há dias e ninguém entendia porquê.

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