54. Não quero ser uma necessidade para ti

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Dia 87

Jake sabia o quão falso e interesseiro soaria se o dissesse em voz alta, mas ele agradeceu mentalmente que April tivesse acesso ao conforto e facilidade da tecnologia. Ele viera a saber que a mansão em que ela vivera com a irmã e os falsos pais nunca fora sua. Elas ocuparam a casa quando a pandemia finalmente fez ceder as grandes cidades e a sociedade ruiu.

Embora ele ainda lhe quisesse apertar o pescoço a maioria do tempo, agradeceu que ela lhes permitisse fazer aquela viagem da forma mais confortável e digna possível. Ele ainda agradeceu mais quando percebeu que não teria de conduzir durante uma centena de dolorosos quilómetros por estradas secundárias e abandonadas, quando a sua cabeça ainda latejava como se trezentos pica-paus lhe quisessem perfurar o crânio em busca de alimento.

O carro de April, ou do casal que vivera na casa enorme e que acabara por ceder à doença, era totalmente diferente de todos os que viera a conduzir durante a vida, e incomparável ao que roubara ao carrasco do melhor amigo. A realidade de automóveis inteligentes estava presente desde que ele se lembrava, porém nunca tivera nenhum. Sempre gostara de conduzir e preferia viaturas com mudanças manuais que lhe permitisse ter controlo absoluto sobre a resposta do motor, que lhe permitisse ter uma relação muito mais crua com a máquina, do que os facilitados carros automáticos, que se assemelhavam a karts de brincar em feiras locais. 

Por isso, ele não deixou de se sentir incomodado quando Brian lhe explicou que aquele automóvel fora concebido para ter um nível de segurança superior ao manuseado pelo utilizador, que todos os sensores eram demasiado sensíveis e que todos os tempos de reação e travagem foram meticulosamente calculados para evitar obstáculos. Ele não acreditou que um carro sem pedais nem volante pudesse ser seguro, mas agradeceu por conseguir desfrutar de uma viagem longa sem ter de conduzir.

Ele só não agradeceu a disposição pouco inteligente dos assentos no carro tecnológico. David insistira em ir à frente, uma vez que ele parecia ainda mais desconfiado com a destreza da máquina automática a alta velocidade, e porque ainda não conseguia aceitar a decisão daquela missão suicida. Todos concordaram que seria prudente que April o acompanhasse no lugar do pendura, onde o cinto de segurança depois de colocado só podia ser retirado com permissão do condutor.

Lá atrás, dois bancos de couro compridos, virados um para o outro, numa disposição em meio-círculo permitia uma viagem confortável e agradável. O passageiro tinha acesso a vários gadgets que lhe permitiam saber pormenores sobre o percurso exato a ser feito pela viatura, assim como entretenimento gratuito durante horas. Um pequeno minibar encontrava-se por baixo de todo o comprimento do banco, e havia a possibilidade de adaptar diferentes estruturas consoante o número de lugares ocupados.

Jake ocupara a meia-lua com Brian, perto da grande janela, e Rachel e Kim ocuparam os restantes lugares. Nenhum dos quatro falou por longas horas, talvez pelo receio do que iriam encontrar em Vancouver, talvez pela tensão que adensava o ambiente e quase que lhes impedia de respirar.

Jake nunca o tinha reparado, mas Rachel não parecia confortável na presença de Brian e ele evitava-a, sem nunca deixar de ser cordial ou mal-educado com a rapariga. Kim não se sentara perto de si, não suplicara para ficar perto dele, do lado da janela, para que pudesse ter o melhor dos dois mundos como ela sempre afirmara. Ela sentara-se à sua frente e toda a sua atenção se centrara na janela, como se fosse uma tela de televisão.

Kim remexia as mãos no colo, sem saber o que fazer com elas, e o que Jake não sabia, porque ela já não lho diria, era que as sentia formigar pela ânsia de pedir a Brian para trocar de lugar consigo, para que se pudesse sentar perto dele e tocar-lhe livremente, abraçá-lo enquanto ele a convencesse de que tudo iria ficar bem.

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