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Depois que as duas se afastam, eu fico ali parado por um tempo.
O lugar parece mais frio. Mais vazio.
Ela me afastou. E, ainda assim, não consigo sentir raiva. Apenas... culpa.

Respiro fundo e sigo meu caminho até a sala onde o Rika me espera.
Durante todo o trajeto, minha mente repassa cada detalhe da Kuon, sua voz trêmula, seus olhos vazios, o pedido para ficar longe. Algo terrível aconteceu com ela. Algo que... eu ainda não consigo alcançar.

Entro na sala.

Rika me encara como se já estivesse me esperando há dias.

- Pode entrar, Yuka. Os outros podem sair.

Eles obedecem sem hesitar.
Todos.
Ele tem presença. Liderança.

Fico observando enquanto o último fecha a porta atrás de si.
Silêncio.

Me aproximo e me sento. Tento me preparar. Mas não sei para o quê.

- Então, o que você queria me dizer?

- Você quer beber alguma coisa? A conversa não vai ser fácil de ouvir.

- Não. Eu só quero a verdade.

Rika respira fundo. Seus dedos passam pelo cabelo como se buscassem forças em cada fio.

- Eu tô feliz que você voltou a si. De verdade. Mas é uma pena que sua consciência voltou... sem a memória dos seus irmãos.

As palavras dele cortam o ar como navalha.
Fico congelado.

- O que você disse?

- Somos meio-irmãos. Eu, você... e a Yuri. Você é o nosso irmão mais velho.

A sala parece girar. Eu me levanto num salto.

- Não. Não. Isso não pode ser verdade. Eu... eu quase matei vocês dois.

A lembrança vem como um soco: eu perseguindo a Yuri. Quase a esmagando.
Rika. Machucado. Sangrando.

- Foi a máscara, Yuka. Não foi você. Você era nosso líder. Você liderava nossa equipe — nossa missão era libertar as pessoas presas nesse mundo. Mas em uma das missões... vocês foram emboscados. Todos os nossos amigos foram mortos. E transformaram você em um Anjo. Jogaram você contra nós.
Meus joelhos vacilam.

- Quantas pessoas eu matei?

- Yuka...

- Quantas?

Ele abaixa a cabeça.

- Não sei. Muitas. Mas nenhuma delas foi morta por você. Foi a máscara. E ela não está mais no controle.
Sinto vontade de gritar. Mas minha voz não sai.

Meus punhos cerrados tremem. Tento processar, mas é como se eu estivesse vendo tudo de fora.

- Quando você virou um Anjo, eu não consegui te matar. Mesmo sabendo que precisava. Porque ainda havia esperança. Esperança de que você voltaria. -
Ele se levanta, caminha até mim. Dou um passo pra trás, sem pensar.

- Eu sei que é muito. Mas essa é a verdade. Você voltou. Mesmo sem lembrar, você está aqui. Você é o meu irmão. E é isso que importa.

Fico encarando o rosto dele.
De repente, vejo algo — uma lembrança.
Um menino, rindo.
Nosso dedo mindinho entrelaçado.

A voz dele ecoa no fundo da memória:

"De dedinho, hein? Não conta pra ninguém."

Me aproximo devagar. Coloco a mão na cabeça dele, como se estivesse vendo aquele menino outra vez.

- Me desculpa... por ter te deixado sozinho, irmãozinho.

Ele desaba.

Se joga nos meus braços. As lágrimas quentes tocam meu ombro.
Eu o abraço de volta. Com força. Com tudo.

Por um instante, me sinto completo.
Como se um pedaço perdido de mim tivesse voltado pro lugar certo.

- Nós três não vamos mais nos separar. É uma promessa.

- De dedinho? — ele sussurra, sorrindo entre as lágrimas. E algo dentro de mim simplesmente estala. A imagem da infância surge inteira.
Um vaso quebrado.
Risos abafados.
Um segredo infantil.

Eu sorrio de volta.

- De dedinho.
Nossos dedos se tocam.
E pela primeira vez desde que acordei neste inferno... sinto esperança.

Mas então algo me vem à mente.

- Espera... por que a Yuri não me reconheceu?

Rika afasta o rosto e me encara.

- Ela era muito pequena quando você foi embora. Seu pai te levou pra outra cidade. Crescemos separados. Ela não se lembra... mas eu sim.

- Quantos anos eu tenho?

Se a Yuri era tão nova assim, então eu e a Kuon também devemos ter uma diferença de idade considerável entre nós...

– Agora você tá com 22. Eu tenho 20. Dois anos de diferença.

Não posso acreditar... Eu sou oito anos mais velho que a Kuon...

– Se eu soubesse disso antes, talvez...

– Não se preocupa com isso. Nesse mundo, nada disso importa. Se você a ama e ela te ama, tá tudo certo.

Assinto, encarando de novo o rosto dele. Nosso cabelo é exatamente igual, assim como os olhos. As maiores diferenças são na altura — devo ter uns dez centímetros a mais — e na estrutura física, que é um pouco mais robusta. Mas mesmo assim, ele me conhece como se ainda fôssemos crianças correndo pela casa.

– Você tá louco por aquela garota, não tá? Se a Nami ver isso, vai surtar...

– Quem?

– Sua namorada. Ou melhor... ex-namorada, eu acho – o Rika dá um meio sorriso, meio tenso. – Nami... vocês eram bem próximos antes de tudo isso acontecer.

Meu estômago revirou. O nome não despertou nenhuma lembrança, nenhuma imagem, nada. Só uma sensação incômoda, como se algo estivesse fora do lugar.

– Não pode ser... eu não lembro dela. E, mesmo que fosse verdade, não importa. Eu só penso na Kuon agora. Só consigo sentir por ela.

– Eu sei – ele diz, me olhando com compreensão. – Dá pra ver. Nunca vi você agir assim com ninguém. Quando se trata dela, você muda. Fica mais humano, mais... real.

– Ela me trouxe de volta, Rika – minha voz sai mais baixa do que eu esperava. – A Kuon me fez lembrar que ainda sou uma pessoa. Que mereço lutar pra seguir em frente.

– A Nami não tá mais aqui. Foi uma das primeiras a ser separada de nós quando vocês caíram na emboscada. Nunca mais ouvimos falar dela.

Fico em silêncio por um momento, tentando assimilar aquilo. É estranho pensar que tive uma vida antes disso, outra história, outra pessoa ao meu lado. Mas nada se compara ao que sinto agora.

– Ela não é mais parte da minha história – digo por fim. – A Kuon... é com ela que eu quero reescrever tudo.

– Então não perde tempo – o Rika diz, me dando um leve empurrão no ombro. – Cuida dela. Ela precisa de você... mesmo que ainda não saiba disso.

– Eu sei. E mesmo que ela não queira me ter por perto agora, eu vou proteger ela. De longe, de perto... como for necessário. Só não vou deixar que ela se perca de novo.

O silêncio entre nós agora é de alívio. Algo que pesava há muito tempo finalmente foi dito. Agora posso seguir em frente – com minha família, com a verdade... e com a Kuon no coração.

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