Toca a campainha, abre-se a porta e os braços, sorri, mesmo se estando num dia ruim, pede-se que fique à vontade, por educação, e por falta dela, fica-se muito à vontade, fazem-se os elogios preliminares, afinal não se deve ser descortês, observa-se... afinal 'o corpo fala' e não é necessário literatura para sabermos disso.
Desacomoda-se da sala, já registrada em detalhes, tapete démodé verde grama, o segundo lugar preferido do bichano, a poltrona de um só lugar, cheio de pelo felino, uma cópia da obra de Monet Nenúfares de 1899, neste caso a moldura deve valer mais que a tela, adquirida em um "relicário", a janela com uma cortina, cetim branca, que cobre toda a parede, uma cristaleira – 'coisa de velho' – com alguma prataria de valor, herança da mãe e a poltrona que lembra um divã... como em um game, vão ao próximo "nível" de intimidade, à cozinha, mesa comum, um conjunto de doze pés, em cima uma receita da vovó, um bolo, nem húmido e nem seco de fubá, já cinquenta por cento fracionado – 'ou está bom por esta partido ou velho por inda está ali' – come-se afinal... um filtro de barro... – 'nossa quanto tempo não vejo um desses, a água é mais fresquinha...' – o tic-tac do relógio sóbrio sobre a porta, armários, geladeira e fogão, não há mais nada a se dizer sobre o ambiente... – 'nossa é tão fresquinho aqui' – ... há não ser perguntar – 'copo ou xícara?' – já sabendo a resposta e por que... serve-se os cafezinhos, come-se uma educada fatia e derrama-se os elogios, afinal não se deve ser descortês – 'hum... bom... prefiro mais amargo e forte, gosto com bastante açúcar, com adoçante... ' – gosto de café.
Conversa-se sobre a vida alheia, críticas, insultos, apontamentos, ojeriza-se, tolera-se a si e aos outros... Queima-se as orelhas em defesa, bebe-se mais café. Por que não beber copo cheio? A etiqueta nunca pode estar fora das calças...
Afinal não se deve ser descortês – 'meu deus, olha a hora, tenho que ir' – alguém diz... e se é gentil dizendo que ainda é cedo, quando já é tarde, muito tarde e mesmo quando não há o que fazer, se deixa muito por fazer e mas algumas vezes... – 'tenho que ir' – e mais outros tantos... – 'fique ainda está cedo' – por muitas vezes o silêncio, cada um, maior e pior que o outro, pela pura falta de assunto, mais a companhia é agradável. Agradável? Agradável! Agradável... Até que a última lacuna é por demais extensa. – 'bom tenho que ir mesmo.' – E da forma mais falsa possível repreende-se a partida, mais à permite. É o último "nível" – 'posso usar o banheiro antes de sair?' – "game over", é a gota!
O que quer no meu banheiro? O que pretende arrumar nesta cara que não tenha feito em sua casa? O que quer saber? Se tem papel? Se está limpo? Se está entupido? Saber a cor do azulejo? Discutir se é realmente lilás ou salmão? Se box ou cortina? Se há uma banheira lá? Se dentro da banheira tem um cadáver? Se fede! – 'última porta à esquerda, fique à vontade...'
Porque ainda existe a ideia de não se ser descortês – 'já reparou que o banheiro sempre fica no meio da casa ou no fim do corredor!' – tece a tese indo...
Talvez isto faria as pessoas se sentirem bem; Quando toca a campainha e alguém abre a porta, eis que se dá de frente com um espelho, nada demais, mas quando dentro verá que no lugar do sofá tem uma latrina... – 'Não consigo imaginar por que o banheiro sempre é no meio do corredor ou no fim da casa.'
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Palavras Para Distrair a Insônia
NonfiksiEste pequeno cacifo, agora aberto e ofertado a vocês caros leitores, que peço, fiquem a vontade para tomá-lo como desejar. Conta com uma série de composições, "estórias", rabiscadas em guardanapos, no velho pardo papel de pão, algumas vezes em meu e...